"Fraqueza das democracias liberais é ameaça maior ao nosso mundo do que a Rússia ou a China"
Em Lisboa para a conferência que lança o ciclo Democracy: The Way Ahead, na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), o professor de Princeton e especialista em relações internacionais falou ao DN sobre a ascensão da China, a forma como a guerra na Ucrânia deu nova vida à NATO e as profundas divisões na política interna americana. John Ikenberry analisou ainda o recente ataque às instituições democráticas em Brasília.
Em 2008 escreveu na Foreign Affairs o artigo A Ascensão da China e o futuro do Ocidente. Passados 14 anos, imaginava na altura que a ascensão da China seguiria o caminho que seguiu e teria o impacto que tem no Ocidente?
Esse artigo procurava pensar no futuro, em como seria uma China mais poderosa. E o meu argumento era que o sistema ocidental, que data de 1945 - as instituições políticas, económicas e de segurança, como a NATO, as instituições europeias, o G7 -, esta estrutura de relações no Ocidente seria suficientemente aberta e dinâmica para acomodar a China. O artigo antecipava que a China ia encontrar razões para ficar mais próxima do Ocidente em oposição a desafiá-lo. E o meu ponto principal era que a ordem liberal é fácil de aderir e difícil de derrubar. O que descobri, passados 14 anos, é que de certa forma, olhando para a China, é demasiado fácil aderir à ordem ocidental. Ou seja, a China juntou-se à OMC e ao sistema comercial, tornou-se rica ao integrar-se na economia mundial centrada no ocidente. Mas não fez as reformas políticas internas que todos esperávamos que fizesse. Hoje, 14 anos depois, estamos num mundo muito diferente.
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Um mundo em que a China continua a crescer rapidamente, mas em que enfrenta desafios como a política de covid-zero, o confinamento do país durante quase três anos, agora as notícias de que a sua população diminuiu pela primeira vez em 60 anos. São problemas que podem pôr em causa o caminho da China para se tornar numa superpotência?
Acho que há limites na capacidade da China para se tornar uma superpotência. É grande, a sua economia vai continuar a crescer, por isso vai ser uma peça importante no sistema para o resto das nossas vidas. Será um Estado importante, entre outros. Mas não parece capaz, agora, de substituir os EUA como a potência global hegemónica. Parte da razão é demográfica, parte é o próprio sistema político chinês, que tem limites. O sistema ditatorial, centrado no Estado, do Partido Comunista Chinês e do presidente Xi Jinping tem limites verdadeiros quando se trata de fornecer um ambiente para o crescimento, a inovação e o dinamismo. Por isso acho que a China vai ser um player importante, mas o receio que muitas pessoas tinham há cinco anos de que toda a gente ia cair e a China ia emergir e organizar o mundo, é uma visão que poucos manterão hoje em dia.
Ao contrário da União Soviética durante a Guerra Fria, a China parece não ter uma ideologia alternativa à americana capaz de captar outros países. Isso é uma desvantagem para os seus desejos de hegemonia?
Diria que isso é basicamente correto. Os chineses não têm uma visão de um sistema cooperativo global da forma que os Estados Unidos e os países ocidentais têm tido no último século - o que eu chamaria de visão liberal internacional. A China tem uma ideologia doméstica, ligada ao Partido Comunista Chinês, mas a sua política externa, o seu comportamento internacional, parece guiar-se mais por relações transacionais, diplomacia económica, recursos, acordos, diplomacia da dívida e do empréstimo. Não tem o tipo de grande visão que pode inspirar países a juntarem-se a um mundo centrado na China.
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Também não tem o soft power da América - os filmes, o desporto, ....a
Sim. E também o inglês ser uma espécie de língua internacional. As universidades, .... Mas acho que os EUA têm de ter muito cuidado com isto porque estes ativos do soft power podem ser corroídos e estragados pela falta de investimento na educação, nas infra-estruturas, por uma espécie de política de imigração nacionalista. O segredo para o sucesso económico e tecnológico continuado da América tem sido a sua abertura ao mundo. Pessoas inteligentes que querem vir para os EUA, fazer investigação, abrir negócios. Penso que estas coisas não devem ser dadas como certas. São presentes maravilhosos que os EUA têm tido, mas estes presentes podem ser desperdiçados.
Depois dos anos Trump, em que vimos uma América mais protecionista, mais isolada, diria que agora é o momento certo para os EUA confirmarem a sua posição de líderes da ordem global democrática e liberal?
É o que a Administração Biden quer fazer e tem dado passos bastante impressionantes para dar um sinal ao mundo que os EUA querem voltar a ser um líder, querem apoiar o sistema que ajudaram a criar ao longo das últimas décadas. E faz isso com um olho na política americana, que é muito complicada, muito dividida. Hoje em dia a visão geral da Administração - e dos americanos internacionalistas - é que os EUA têm um papel importante a desempenhar. A guerra na Ucrânia mostrou que ainda precisamos de ter os Estados democráticos a trabalhar juntos. E os EUA sentem que têm de ser um player central na organização do mundo democrático. O que mudou é a sensação de que os EUA já não são tão dominantes como eram há uma geração. Têm de trabalhar com parceiros e aliados.
Uma das coisas que tem defendido é a necessidade de os EUA reforçarem instituições como a NATO. Com a guerra na Ucrânia vimos precisamente a Aliança Atlântica a ganhar nova força. Esta é a oportunidade para mostrar que a NATO continua a fazer sentido no mundo de hoje?
Sem dúvida. A guerra na Ucrânia, a invasão ilegal da Ucrânia pela Rússia, lembrou ao mundo - e certamente à Europa e aos Estados Unidos - que o iliberalismo e a agressão não são uma coisa do passado, continuam connosco. E a única forma de lidarmos com eles é trabalharmos em conjunto. A grande revelação de 2022, apesar de todas as más notícias que tivemos no último ano, foi que a NATO voltou a encontrar um papel, há mais cooperação agora através do Atlântico do que houve durante anos e anos. Houve a revelação de que a cooperação multilateral, neste caso sanções e apoio militar, pode mesmo gerar poder para travar um Estado iliberal. É uma prova para a premissa de que a cooperação multilateral pode gerar poder verdadeiro e influência, que países individuais, quando trabalham juntos, podem fazer a diferença.
Durante muitos anos vimos os EUA a olhar mais para oriente do que para ocidente, mais para o Pacífico do que para o Atlântico. Esta guerra veio mudar um pouco o foco da política externa americana e virá mais para a Europa?
Sim e não. Ainda acho que os EUA veem a China como o maior desafio, e de certa forma, o que os EUA estão a fazer com a Europa para apoiar a Ucrânia é em parte com um olho na China. Há uma ideia muito forte de que a Rússia não pode vencer. Ou, digamos antes assim, se Putin vencer e conseguir o que quer na Ucrânia isso terá enormes implicações para o mundo, para o sistema global, para o que achávamos serem as regras que proibiam o uso de força para anexar territórios, o uso de violência contra civis como ferramenta de guerra, o ameaçar com o uso de armas nucleares, como Putin tem feito. Estas são violações básicas das regras globais fundamentais. E travar Putin é defender as regras e instituições globais. Além disso, os EUA estão empenhados em trabalhar com os aliados para apoiar os países democráticos que estão a lutar para se protegerem. Isso inclui também Taiwan. É um conjunto de problemas interconectados.
Falava há pouco das divisões nos EUA, na política americana, diria que a China ainda é um "inimigo" comum capaz de gerar consenso entre democratas e republicanos?
"Inimigo" talvez seja um pouco forte, mas com certeza "ameaça" e, sem dúvida, "desafio". Este será o termo a reunir mais consenso no espectro político. Alguns veem a China como ameaça, outros mesmo como inimigo. Há sem dúvida várias visões. Mas, de forma geral, há um consenso bipartidário de que a política externa americana deve centrar-se em enfrentar o desafio da China.
Quanto a Taiwan, não sendo comparável com a Ucrânia, acha que os EUA teriam uma posição de maior força se a China invadisse a ilha que vê como uma província rebelde?
A China invadir Taiwan seria uma catástrofe. A política americana está orientada para duas coisas: por um lado reafirma os princípios que permitiram alguma estabilidade no estreito de Taiwan - a política de uma só China, os acordos que datam da Administração Nixon, nos anos 70, que dizem que o futuro de Taiwan será estabelecido pacificamente e que Taiwan não irá declarar a independência unilateralmente. Vamos trabalhar nesta ideia de um país, dois sistemas. Isso e dissuasão. Vamos trabalhar para que a China perceba que Taiwan é suficientemente capaz, militarmente, para que Pequim fique relutante em usar a força.
Voltando à Rússia, depois da invasão da Ucrânia, e seja qual for o desfecho da guerra, como é que o mundo vai lidar de seguida com a Rússia de Putin, se ainda for a Rússia de Putin?
Acho que ainda estamos a tentar perceber isso. Vai depender muito se Putin ainda lá está ou não. A curto prazo, há uma forte posição nos EUA e na Europa de que é preciso apoiar os ucranianos para que no final da guerra continue a haver uma Ucrânia forte e independente, um país autogovernado, com a sua soberania. Os pormenores, não sabemos. A determinada altura haverá negociações. Mas a independência e soberania da Ucrânia é o objetivo. E dar todo o apoio militar que podemos, dentro dos limites razoáveis, é o foco. Como é que a Rússia vai evoluir no contexto de um fracasso catastrófico e estratégico é uma incógnita. Se Putin continuar no poder nos próximos anos vamos ver uma Rússia isolada, mais pequena, mais fraca, menos respeitada. Mas ainda um país perigoso. E este pode ser o cenário nos próximos anos: uma espécie de impasse em que Putin continua no poder, continua a pôr pressão na Ucrânia, que continua a resistir. Pode acontecer que após alguns anos haja mudanças na Rússia. Mas uma Rússia pós-Putin não será necessariamente mais amistosa. Não há muitas facões liberais à espera para renegociar a relação com o mundo. Mas temos de começar a pensar como é que a Rússia pode ter um lugar no mundo, pós-Putin. E a Rússia não vai desaparecer, ocupa um enorme espaço geográfico na Eurásia, é difícil de ignorar. Por isso, encontrar um lugar estável para a Rússia é essencial. Uma Rússia que desista das suas ambições imperiais, o que é muito difícil para um Estado imperial - dizer "já não vamos ter esta esfera de influência, este espaço imperial". É um ajustamento doloroso e pode levar anos.
Esta guerra na Ucrânia mostrou a Europa e os EUA a agirem como um bloco, enquanto o resto do mundo parece muito menos interessado no conflito - África, América do Sul, parte da Ásia. Isto revela as linhas em que o mundo se divide hoje em dia?
Sim, isto é onde o mundo está hoje. Temos a Rússia e a China de um lado e aquilo a que Giddeon Rachman do Financial Times chamou de "Ocidente global", ou seja, EUA, Europa, também Japão e Coreia do Sul, Austrália. É um Ocidente maior e não geográfico. Depois temos o resto, que inclui a Índia, muito importante, países na América Latina, África, Sudeste Asiático. Estes países são ambivalentes, são todos diferentes, mas todos estão receosos de se oporem à Rússia porque isso também seria um pouco opor-se à China que, para muitos deles, é o maior parceiro comercial. Por isso, tomar partidos é tanto um problema ideológico como económico. Os europeus e os americanos têm de apresentar a guerra como uma luta pelos princípios globais e não a favor da hegemonia ocidental. Muitos países do sul global ouvem a narrativa russa de que é o poder hegemónico ocidental a tentar tirar-lhes a sua esfera de influência razoável. "Eles é que são o problema e não nós". Essa narrativa encontra eco no sul global pós-colonial. A resposta é que Putin não é amigo do sul global, está a violar as normas que este vê como sagradas e pelas quais luta para manter a independência e ter a sua própria voz no sistema global.
Os recentes ataques de apoiantes do ex-presidente Bolsonaro em Brasília trouxeram à memória o ataque de 6 de janeiro de 2021 em que os apoiantes de Trump invadiram o Capitólio em Washington. Estes grupos de extremistas, alimentados por líderes também extremistas, são uma verdadeira ameaça para as instituições democráticas?
A minha visão é que a fraqueza das democracias liberais é uma ameaça maior ao mundo em que queremos viver do que a Rússia ou a China. Os problemas estão em casa, dentro dos nossos países, na incapacidade para legitimar e renovar as instituições democráticas. O populismo tem sido alimentado por desequilíbrios económicos, discriminações raciais, amplificado pelas redes sociais. E líderes populistas e demagógicos fortes estão a aproveitar-se disso - Bolsonaro, Trump, Erdogan, e muitos outros. Dentro do mundo democrático. Usam o seu poder para tentar dominar o poder judicial e quase usando meios legais constitucionais para minar o Estado de Direito e a capacidade dos seus países para entrarem numa competição democrática. É um problema enorme. Não são golpes militares, não são ditaduras militares, são líderes populistas que abusam das instituições democráticas. Que usam a democracia para minar a democracia. E ainda não encontrámos uma resposta para isso. Estamos na defensiva, a tentar perceber como é que se impede um 6 de Janeiro, ou um 7 de Janeiro como vimos em Brasília. Não estamos safos ainda.
helena.r.tecedeiro@n.pt
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