A 7 de novembro de 2004, cinco dias após a Eleição Presidencial, o New York Times publicou um artigo sobre o estado de choque dos democratas com a reeleição do republicano George W. Bush. “Perplexos com a derrota, os democratas procuram o caminho a seguir.” Era uma reflexão sobre a desilusão, incredulidade e falta de soluções do Partido Democrata, após o seu candidato John Kerry perder por três milhões de votos para um Bush muito impopular, que tinha atirado os Estados Unidos para a “guerra ao terror.”.Nessa altura, os democratas sentiram que tinham falhado a interpretar o eleitorado e perdido a sua alma. O mapa dos Estados Unidos era um mar de vermelho, a cor que representa os republicanos. Não se perfilava uma direção, nem um líder que tomasse as rédeas dos democratas..Dois anos depois, o partido arrasou os republicanos nas Eleições Intercalares e ganhou o controlo do Congresso, numa das viragens mais impressionantes dos tempos modernos. E em apenas meses após essa vitória, o então senador Barack Obama anunciava a sua candidatura às Eleições Presidenciais e acendia uma nova chama no partido, que brilhou forte durante quase uma década. .É esta a história que os estrategas democratas, dilacerados pela reeleição de Donald Trump, querem ver repetir-se. Vão estar na minoria pelo menos durante dois anos, já que os republicanos ganharam o controlo das duas câmaras do Congresso e da Casa Branca, e não têm líder aparente. .Joe Biden, aos 82 anos, vai terminar a carreira política. Kamala Harris, a derrotada, deixará de ser vice-presidente e não se sabe que ambições terá nos próximos anos. Os Clinton e os Obama não vão voltar. É o fim de uma era e o início de outra, em que será preciso redefinir a alma do partido e repensar a coligação que o sustenta..Quem é o líder que se segue?.Apesar de os votos da eleição de 5 de novembro ainda não terem sido todos contados - há três corridas por decidir na Câmara dos Representantes -, já começou a discussão sobre quem se perfila para liderar os democratas a caminho de 2028, havendo uma dúzia de nomes na calha..Uma sondagem da Morning Consult indica que Kamala Harris continua no topo das preferências, com 43% dos democratas e independentes com pendor democrata a dizerem que votariam nela para as Primárias. O (ainda) secretário dos Transportes Pete Buttigieg tem 9% de apoio e o governador da Califórnia, Gavin Newsom, 8%. Fala-se ainda da governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, ou do governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, embora estes nomes sejam bastante menos conhecidos entre o eleitorado..“Daqui até à próxima Eleição Presidencial, os democratas têm necessidade de renovação”, disse ao DN a cientista política luso-americana Daniela Melo, professora na Universidade de Boston. “Não é que não tenham candidatos fortes, têm. Mas o que eles precisam é de um novo Obama, como quando tiveram um Clinton”, afirmou. “Todos estes foram momentos absolutamente cruciais e de transição no Partido Democrata.”.Bill Clinton acabou com 12 anos de domínio republicano na Casa Branca, que começou em 1981 e só terminou em 1993. A sua estratégia foi relançar o partido com os mesmos princípios, mas um foco renovado na importância da economia..“O que Clinton fez muito bem foi relançar o partido, depois de anos a definhar, com esta nova dinâmica”, explicou Daniela Melo. “Ou seja, o partido não pode simplesmente adaptar a ideologia a cada grupo que acha que lhe vai dar votos a seguir”, considerou. “Tem de se agarrar à sua identidade de uma maneira pragmática e transformacional. Para isso, precisa de uma liderança que esteja disposta e que consiga verbalizar essa renovação.”.Várias décadas de alternância mostram que o tipo de desalento e crise identitária que o Partido Democrata sente hoje é cíclico. O sucesso de Clinton acabou por desembocar na Presidência de George W. Bush e vice-presidência de Dick Cheney, que lideraram o país no pós-11 de Setembro e levaram a guerra ao Iraque e Afeganistão. Apesar de 10 000 soldados norte-americanos terem morrido na guerra entre 2001 e 2004, os eleitores voltaram a eleger a dupla Bush-Cheney, perante a incredulidade dos democratas. Há paralelos entre o que aconteceu então e o que aconteceu agora..“Quem é que em 2004 achava que em 2008 íamos ter um Obama? Ninguém”, apontou Daniela Melo. “Em 2004 aquilo era um mar de vermelho no mapa. Parecia absolutamente impossível que os democratas conseguissem reencontrar uma mensagem que fosse vencedora e que conseguisse aliciar os americanos para um novo capítulo.”.O diabo que se conhece.A reorganização do Partido Democrata deverá começar dentro da DNC - Democratic National Committee, onde são tomadas as decisões executivas sobre o futuro. É aqui que irão debater o que correu mal e que remédios podem ser tomados, sendo que uma das críticas dos eleitores afetos ao partido é que a cúpula não foi capaz de perceber que Joe Biden era demasiado velho e impopular para voltar a ser o candidato democrata..As críticas foram sendo desvalorizadas durante as Primárias, que Biden venceu quase sem problemas - salvo o sinal dos não-comprometidos que protestavam contra o posicionamento da Administração no conflito Israel-Hamas que rebentou em outubro de 2023. .Quando Kamala Harris finalmente substituiu Biden, faltavam apenas 100 dias para as eleições e a candidata teve de montar, em três meses, uma campanha que normalmente leva um ano e meio. .Daniela Melo considera que Harris fez uma campanha forte e conseguiu, de forma notável, arrecadar quantidades milionárias para os cofres do partido. Isso deverá gerar o ímpeto de lhe dar uma segunda oportunidade, mas a cientista política aponta para o risco de seguir pela via conhecida. .“Esse ímpeto pode ser um tiro no próprio pé do Partido Democrata, porque um dos grandes falhanços da sua campanha foi que ela não se conseguiu separar de Biden”, salientou. “Já havia aquela sensação de que era necessário um candidato que trouxesse essa renovação ao partido.”.Ao oferecer mudanças progressivas e não progressistas, com foco na continuidade institucional, Kamala Harris não se posicionou como candidata de mudança junto de um eleitorado que queria precisamente isso. “Se daqui a quatro anos os democratas apresentam mais do mesmo, o resultado provavelmente será o mesmo”, sublinhou Daniela Melo. Há rumores de que Harris poderá candidatar-se a governadora da Califórnia em 2026, quando terminar o mandato de Gavin Newsom, o que afastaria esse cenário. .Embora Donald Trump já tenha sido presidente, o republicano continuou a posicionar-se como um disruptor, com ideias fora do normal e rodeado de gente que vem de fora de Washington, D.C. A analista lembra que Trump foi o culminar de um processo de renovação e busca da alma do partido que começou com a eleição de Barack Obama, em 2008. .“Há aqui uma dinâmica de pêndulo”, frisou Melo. “O processo padrão é que tem de haver uma derrota que seja quase existencial ou que traga questões existenciais ao partido para haver realmente espaço para uma mudança radical em termos estratégicos.”.A discussão será diferente quando chegar o primeiro teste real à segunda Presidência de Donald Trump, em 2026. As Eleições Intercalares poderão mudar o equilíbrio de poder em Washington, se os democratas conseguirem reconquistar pelo menos uma das câmaras do Congresso. .“Esta é uma conversa mais viável daqui a dois anos”, realçou Melo, “quando percebermos o que é que aconteceu nas Intercalares e começarmos a ver quem é que se consegue lançar como a potencial figura que poderá liderar o partido no seu próximo capítulo e que tipo de plataforma é que eles arranjam que não desenraíze o partido, mas que o desencalhe.”Os democratas precisam, disse, de uma liderança que consiga articular algo que não seja só antitrumpismo, algo que seja positivo e, por si só, apele aos americanos. “Neste momento, ninguém sabe o que é que isso é.”.Mas tudo dependerá do que acontecer entretanto. Poderemos ter um Trump que se torna o novo Reagan, por exemplo. Ou então o novo Bush. “Daqui a quatro anos pode haver uma rejeição fortíssima do trumpismo.”.NOMES POSSÍVEIS PARA A LIDERANÇA.Há um apetite por novidade entre o eleitorado, mas nomes como o milionário Mark Cuban ou a ex-primeira dama Michelle Obama não estão na calha, por expressa recusa dos visados. O holofote está então em governadores e caras relativamente novas..Gavin NewsomGovernador da Califórnia .Surge em segundo lugar nas pesquisas incipientes, depois de ter sido um nome bastante falado como alternativa a Joe Biden antes das Primárias. É governador da Califórnia e sobreviveu a uma tentativa de destituição em 2022, mas tem baixa popularidade, em torno de 44%. No entanto, é um dos democratas que melhor se confronta frente a frente com republicanos - já foi várias vezes à Fox News e apresenta-se agora como líder da resistência a Trump..Pete ButtigiegSecretário dos Transportes .O secretário dos Transportes é um dos democratas mais populares, com 59% de aprovação segundo os dados da YouGov. É conhecido pela eficiência e competência e, tal como Newsom, tem um histórico de se bater bem em território adverso, como a Fox News. No entanto, a sua orientação sexual (homossexual) ainda é vista como potencialmente negativa junto dos eleitores conservadores..Gretchen WhitmerGovernadora do Michigan .A governadora do Michigan tem uma posição favorável junto do eleitorado, com 50% de aprovação (dados YouGov) e vem de um dos Estados decisivos para chegar à Casa Branca. No entanto, após as derrotas de duas mulheres candidatas (Hillary Clinton e Kamala Harris), o partido pode não querer arriscar já uma terceira vez. .Josh ShapiroGovernador da Pensilvânia .Quase foi escolhido para vice-presidente de Harris e é um dos governadores democratas mais populares. O facto de a Pensilvânia ter guinado à direita pode inspirar os democratas a apostar em alguém que é jovem (51), popular (49% aprovação) e profundamente conhecedor deste eleitorado de colarinho azul. .Ruben GallegoSenador do Arizona .Acaba de ser eleito para o Senado no Arizona, conquistando votos nos mesmos boletins onde os eleitores do Estado escolheram Trump. Por ser hispânico, ex-militar da Marinha e muito jovem (44 anos), Gallego é uma das estrelas ascendentes no partido.