Erdogan admite "lacunas" e visita vítimas para evitar pagar o preço nas eleições de maio

Presidente turco enfrenta, a poucos meses da ida às urnas, um dos maiores desafios em 20 anos. Ao contrário de outras ocasiões, foi rapidamente para o terreno, procurando calar as críticas que têm vindo a subir de tom.

Depois do sismo de 1999 em Izmit, que causou a morte a pelo menos 17 mil pessoas, as vozes levantaram-se contra a resposta inadequada do governo turco e as falhas nos edifícios apontadas à corrupção de oficiais e construtores. A onda de choque foi tal que todo o sistema institucional da Turquia ficou abalado e isso preparou o terreno para a ascensão do atual presidente, Recep Tayyip Erdogan.

A pouco mais de três meses das eleições parlamentares e presidenciais, e à medida que as críticas de então se ouvem também agora, esse é um cenário que Erdogan não quer ver repetido. Ontem esteve no terreno, viu edifícios destruídos e visitou vítimas que ficaram desalojadas. Além disso, admitiu "lacunas" na resposta das autoridades aos sismos de segunda-feira. Ainda assim, afirmou ser "impossível estar preparado para um desastre desta dimensão" e apelidou de "desonestos" alguns dos críticos.

O número de mortos do sismo de magnitude 7.8 e das fortes réplicas de segunda-feira (uma delas de 7.5) chegava ontem a 12 049, dos quais mais de nove mil só na Turquia (os restantes quase três mil na Síria). Erdogan falou em pelo menos 50 mil feridos, tendo mais de oito mil pessoas sido retiradas com vida dos escombros. Perto de 380 mil estão em abrigos do governo ou hotéis. As equipas de resgate de mais de duas dúzias de países e a ajuda internacional, que Erdogan pediu de imediato, continuam a chegar.

Este é considerado o maior desafio de Erdogan, que está há 20 anos no poder - primeiro como chefe de governo e, desde 2014, como presidente. "Erdogan é o responsável. Este governo não preparou o país para um sismo durante 20 anos. As políticas dele trouxeram-nos a esta situação", disse o líder do principal partido da oposição, o Partido Republicano do Povo (CHP), Kemal Kilicdaroglu, que também visitou o terreno. Outras críticas chegam através das redes sociais, tendo o Twitter deixado ontem de funcionar no país.

Kilicdaroglu é apontado como um dos possíveis adversários de Erdogan nas presidenciais que este quis antecipar para 14 de maio - a mesma data em que se realizaram as eleições de 1950 que marcaram o fim da hegemonia do CHP, que tinha sido fundado por Mustafa Kemal Atatürk, o primeiro presidente e fundador da república moderna que cumpre cem anos em outubro.

"Este é um tempo para a união, a solidariedade. Num período como este, não consigo imaginar as pessoas a conduzirem campanhas negativas por interesse político", disse o presidente na sua visita à província de Hatay. "Algumas pessoas desonestas e sem vergonha publicaram falsas declarações como "não vimos soldados nem polícias"", denunciou Erdogan. Só para esta província, a mais afetada, o presidente alega que foram destacados 21 mil membros dos serviços de socorro. O facto de a pista do aeroporto ter ficado danificada complicou a chegada de ajuda à região.

Apesar das críticas e do ambiente negativo, analistas, citados pela Reuters, lembram que o presidente é habilidoso na hora de fazer campanha e o seu governo já enfrentou no passado outros sismos (menos graves), fogos e desastres naturais. E pode usar esta tragédia para ganhar apoio nacional na resposta à crise e fortalecer a sua posição, que já estava frágil antes - a inflação elevada estava a deixar marca no seu currículo de gestor capaz, mesmo que autocrático. A resposta do governo poderá convencer eleitores indecisos, mas não deverá afastar os mais leais.

O problema é que Erdogan já enfrentava problemas, com as sondagens a mostrar que deve ser necessário ir a uma segunda volta das presidenciais e com Erdogan a perder para vários adversários. Ainda assim, a sua popularidade tinha vindo a melhorar nos últimos meses, segundo sondagens citadas pelo jornal online Middle East Eye, devido às medidas tomadas pelo presidente - em janeiro aumentou o salário mínimo no setor privado em 94% em relação ao ano anterior, com a inflação a desacelerar para os 64%. Os funcionários públicos também beneficiaram desta medida, além de outras, como o alívio da dívida fiscal.

Erdogan também beneficia do facto de a oposição, o Grupo dos Seis, como são conhecidos, ainda não ter escolhido um candidato. Além de Kilicdaroglu, outro nome que se falava seria o do presidente da câmara de Ancara, Mansur Yavas, mas este já apoiou o líder do Partido Republicano do Povo. O presidente da câmara de Istambul, Ekrem İImamoglu, outra figura popular, foi condenado a mais de dois anos de prisão por "insultar oficiais eleitorais" e proibido de concorrer a cargos públicos. O caso está no tribunal de recurso.

A situação para Erdogan pode contudo ficar ainda pior. Depois do sismo de 1999, foram criadas novas regras de construção, mas há muito que os arquitetos se queixam de que não estão a ser seguidas à risca. Além disso, muitas das áreas agora atingidas têm assistido a um boom na construção encorajado por Erdogan, segundo o site Politico, envolvendo empresas com ligações ao presidente e ao seu partido. Se os novos apartamentos tiverem sido mais afetados que os antigos, então Erdogan pode ficar ainda mais debaixo de fogo.

susana.f.salvador@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG