Qual o simbolismo de lançar em Portugal o livro Conexões Continentais Portugal-Brasil: Amazônia e as Questões Socioambientais Globais?É como se fosse uma lança, uma força, que surge também de um dos elementos que tem na dimensão académica, que é a criatividade. Vim para Portugal fazer um pós-doutoramento e discuto a questão da energia, dos movimentos sociais na Amazônia, frente aos grandes projetos que lá são colocados. E esses grandes projetos, de regra, são emanados por empresas multinacionais, muitas delas europeias, mas também estadunidenses, chinesas. Eles não entendem a nossa sociabilidade e simplesmente nos veem como um celeiro, um espaço onde eles podem tirar tudo, inclusive a nossa dignidade. Porque quando se barra um rio e se diz que a energia que se cria de uma hidrelétrica é limpa, é um discurso na medida em que pessoas são impactadas. E nós, amazónicas, somos a extensão da natureza, da comunidade. Então, quando isso acontece conosco, faz com que a gente realmente repense. E como que a gente ecoa as nossas vozes? Eu sou uma voz de uma mulher, de uma pesquisadora, que trabalha nessa Amazônia e que já passou por situações onde viveu com mulheres ameaçadas de morte, mulheres que sofrem violência. A jornalista Eliane Brum fala que a Amazônia é mulher. Porque no seu corpo, que é a sua territorialidade, ela tem pessoas que, digamos assim, que vivem e cultivam essa territorialidade, como ela também tem situações em que ela é agredida, ela é desrespeitada na sua integridade, na sua forma de ser e viver.Como surgiu a ideia de fazer o livro, em conjunto com académicos de várias partes da lusofonia?Aqui em Lisboa eu conheci a professora, também de Serviço Social, Maria Inês Amaro, que discute a justiça ambiental. Então, ela também concordou. Eu fiquei pensando, o pós-doutoramento é alguma coisa que você pode fazer, um artigozinho, um projeto e pronto. Mas depois eu pensei assim: mas o que isso vai ecoar? O meu estado, a minha universidade, investe um recurso grande para que eu venha para cá estudar. Ainda mais agora, que teremos a COP 30 em Belém do Pará, o meu estado. E nós precisamos deslocar esse olhar para que a ciência comprometida, a ciência orgânica, se comprometa e mostre que nós temos estudado, nós temos dados, nós temos caminhos, nós temos reflexões. As políticas sociais precisam ser pensadas a partir de uma orientação também científica. Então, nós temos sim, como ciência, uma responsabilidade social. E o que acontece na Amazônia, não é um problema da Amazônia, é um problema do mundo.E como vê em Portugal o engajamento sobre as questões ambientais?Justamente, o livro é uma forma de equalizar nossas vozes a partir de Portugal, que é um país irmão, onde a gente encontra o abrigo na Embaixada do Brasil. E temos que nos perguntar o seguinte: os pesquisadores lusófonos estão preocupados com a questão ambiental, socioambiental? Como é que hoje a Europa tem se posicionado do ponto de vista da academia em relação a essa questão? Você vê, há um desmatamento profundo na Europa. A estratégia tem que ser de equalizar vozes, mas várias, não só a minha. Só a minha não basta. Eu juntei as forças e tive a sensibilidade de contar com outros pesquisadores de várias áreas que também que se inquietam. Nós pegamos esse misto de saberes e trouxemos as discussões.No discurso de lançamento do livro falou bastante nas mulheres da Amazónia. Como é que vê a participação das mulheres na defesa da floresta?É impressionante você perceber a história dos movimentos sociais na Amazônia e o protagonismo, as mulheres sempre estão na frente, embora não estejam nas posições de poder. São elas que executam e monitorizam. E essas mulheres também criam seus filhos sozinhas, elas são chefas de família, trazem a comida para dentro de casa e estão nas associações, na organização da comunidade, defendendo as florestas, defendendo corpos, defendendo dignidade, defendendo homens, defendendo suas crianças, defendendo seus rios, defendendo seus peixes, estão sempre na luta. Na Amazônia, nós não temos alternativa, a luta é uma condição sine qua non. Ou se luta, ou não se vive. Porque você precisa garantir dignidade, respeitabilidade. Ainda temos muito problema com a exploração sexual de crianças e adolescentes, muitos problemas de violência doméstica, muito embora tenhamos avanços que são importantíssimos, como a lei Maria da Penha, que em Portugal não temos. Falou também que muita gente fala que a Amazónia é o pulmão do mundo, mas você falou que a Amazônia também é o coração do mundo. Porquê?Porque nela pulsa também uma realidade de vida. O pulmão do mundo está muito relacionado, essa visão meio romântica da terra, da água, do ar, ela existe, ela está lá. É, digamos assim, alguma coisa que está mesmo, que é territorial, que é a Amazónia, ou melhor, no plural, porque são oito países no total. São povos e multipovos, desde os povos originários, às populações tradicionais, às pessoas que migram. Por exemplo: uma vez, um aluno meu indígena disse assim: ‘olha professora, sabe esse shopping que vocês vão, compram as coisas, se arrumam um domingo para ir? O nosso shopping é a nossa floresta. Se vocês desmatam, se vocês barram o nosso rio, vocês impedem os nossos ventos, vocês estão impedindo a gente de se divertir como vocês se divertem no shopping. Quando a gente quer comer, a gente vai lá. Quando a gente quer lazer, a gente vai no rio tomar banho’. Então, essa visão é mostrar que esse coração também são formas de sociabilidade, outras que não necessariamente o consumismo e o individualismo. E o que os demais povos podem aprender com os povos da Amazónia? Eu não sei se aprender, sabe? Porque as coisas estão tão dadas, estão tão claras. Eu acho que tem a ver com uma visão de entender a essência humana que somos todos nós, a partilha. Precisamos repensar um sistema que nos obriga a consumir e a viver de outra forma. Nessa forma da individualidade, do individualismo, do consumismo, da falta de respeito a nós mulheres, da violência contra as nossas crianças, da violência contra os povos originários, da violência contra as mulheres negras, os homens negros, da violência contra o igual. Só assim podemos irmanar, olhar o nosso sentido irmão, ouvir e prestar atenção. Não existe uma ciência que não dialogue com os multisaberes. Eu sou uma defensora de que a ciência precisa estar diretamente conectada com os outros saberes, com as outras sensibilidades, com as outras formas de organização e luta, com os outros olhares para o mundo. Então eu penso que, eu não sei se a gente tem o que ensinar, porque eu vejo muitos europeus que são pessoas sensíveis, tanto que conseguimos fazer esse trabalho aqui com pesquisadores lusófonos, eles abriram o coração para entender, assim como abri o meu coração para entender Portugal e a Europa.O livro Conexões Continentais Portugal-Brasil: Amazônia e as Questões Socioambientais Globais será também lançado na COP-30, no Brasil. Ainda não há informações disponíveis sobre a venda em Portugal. As primeiras impressões foram distribuídas no evento de lançamento, na residência oficial do Embaixador do Brasil em Lisboa.. amanda.lima@dn.pt.Declaração de Belém relança aliança dos países da Amazónia.França vai construir prisão de alta segurança em plena Amazónia para jihadistas e narcotraficantes (com fotos)