Em voo inédito da justiça norte-americana Trump será passageiro ou piloto  

Procurador distrital de Manhattan argumentava em fevereiro que a acusação que esteve para avançar em 2021 não estava pronta para descolar. Com a opinião pública do seu lado neste caso, o ex-presidente tentará manobrar à sua vontade.

Donald Trump continua a fazer história. O único presidente por duas vezes condenado pela Câmara dos Representantes (mas ilibado pelo Senado), o único que não aceitou a sua derrota e tentou reverter o resultado eleitoral, é agora o primeiro ex-chefe de Estado norte-americano a ser acusado por um grande júri. Depois de ter previsto uma dúzia de dias antes que iria ser detido, tendo apelado para os seus seguidores protestarem, o de novo candidato às primárias republicanas foi apanhado de surpresa.

Um pouco como o resto do país, já habituado a que o empresário e antigo entertainer - que certa vez se gabou de que podia disparar sobre alguém no meio de Manhattan e não ter consequências - "dance entre as pingas da chuva da responsabilização", como escreveu o ex-procurador de Manhattan Mark Pomerantz num livro em que conta como se desentendeu com o procurador distrital Alvin Bragg.

Pomerantz, que havia entrado em janeiro de 2021 como procurador especial para liderar a investigação a Trump, em dezembro recebeu do procurador distrital cessante Cyrus Vance luz verde para indiciar o ex-presidente, num caso centrado na falsificação de registos, em concreto o inflacionamento do valor dos bens nas declarações financeiras que Trump forneceu aos credores. Mas o novo procurador distrital Alvin Bragg não estava de acordo, o que acabou por levar a um desentendimento e à saída do procurador especial em fevereiro de 2022.

No livro People vs. Donald Trump: An Inside Account, um desiludido Pomerantz revela que numa conversa entre ambos Bragg admitia que "não conseguia ver um mundo" no qual indiciaria Trump e chamaria como testemunha o seu ex-advogado e facilitador Michael Cohen. "O avião de Pomerantz não estava pronto para descolar", reagiu Bragg numa declaração ao lançamento da obra, citado pela Associated Press.

Pouco mais de um ano após a demissão de Pomerantz, o avião descolou depois de um júri especial, composto por 23 cidadãos, ter ouvido testemunhas e decidido por maioria acusar Trump.

Apesar de os Estados Unidos serem um país do "novo mundo", republicano e anticolonial na sua génese, a reverência ao cargo presidencial vê-se em pormenores como o tratamento dado aos antigos residentes na Casa Branca: continuam a ser chamados de presidente. E nunca entre estes houve acusações criminais. Embora dois tenham estado na iminência. Em 1921, Warren Harding era suspeito num escândalo de corrupção, mas morreu no cargo. E em 1974, Richard Nixon enfrentaria com grande probabilidade acusações após o escândalo Watergate, que levou à sua demissão, mas o sucessor, Gerald Ford, perdoou-o.

Algemas douradas

Entre o círculo de Donald Trump já se tinha instalado a ideia de que não haveria pronúncia. "Foi uma surpresa para todos", disse David Urban, um conselheiro do nova-iorquino, citado pelo The Washington Post. O mesmo jornal garante que alguns assessores tinham começado a dizer ao antigo presidente que ele não seria indiciado e este já fazia piadas à volta de "algemas douradas".

A resposta de Trump consiste em apresentar-se de forma voluntária no tribunal na terça-feira (tinha sido convocado para esta sexta-feira, mas os seus advogados argumentaram que era necessário mais tempo), alegando a sua inocência e tentando por via de moções o arquivamento das acusações e o afastamento de testemunhas.

Ao mesmo tempo, e como é seu timbre, vai tentar lucrar (em todos os sentidos, recebeu dois milhões de dólares de seguidores depois de ter dito que iria ser preso) com o caso. Também ao diário de Washington, um conselheiro do ex-presidente disse que embora este preferisse não ser indiciado, o ex-presidente planeou "aproveitá-lo de todas as vantagens políticas", utilizando as acusações para congregar republicanos à sua volta, campanha incluída, apresentar-se como vítima e angariar fundos.

Além da já velha "caça às bruxas" de que se queixa amiúde, o argumento mais forte é o de que o procurador Bragg, democrata, levou adiante um caso com motivações políticas. "Isto é perseguição política e interferência eleitoral", reagiu à notícia de que iria ser indiciado.

Muitos compatriotas, e não só republicanos, estão de acordo. Segundo uma sondagem da Universidade de Quinnipiac, 62% creem que o caso é mais político do que de justiça. Neste lote de norte-americanos incluem-se 32% de democratas e 70% de independentes.

À Reuters, o estratega republicano John Feehery descreveu o caso de Manhattan como "idiota", principalmente se tivermos em consideração as outras investigações à volta de Trump.

O procurador especial Jack Smith supervisiona a investigação de dois casos: se Trump conspirou para obstruir a certificação formal no Congresso do resultado das eleições ou cometido fraude para bloquear a transferência pacífica do poder; e sobre o possível desvio de informações classificadas, em resultado das buscas na sua residência terem encontrado mais de 100 documentos classificados.

Além disso, a procuradora Fani Willis está a liderar uma investigação sobre os esforços para reverter a derrota eleitoral na Geórgia. Depois de um grande júri ter produzido um relatório, um novo grande júri vai decidir se avança com acusações criminais.

"Não é bom para Trump, a questão é como é mau. Pode haver múltiplas acusações... começa a somar-se a um grande problema", comentou por sua vez Larry Sabato, diretor do Centro de Estudos Políticos da Universidade da Virgínia.

P&R

Delito ou crime, eis a questão


Quais são as acusações?
Isso é o que Trump irá saber na terça-feira, quando for presente a um juiz em Manhattan, Nova Iorque, uma vez que permanece sob segredo judicial. Segundo a CNN, são mais de 30 acusações relacionadas com fraude empresarial.

O que foi investigado?
A investigação da procuradoria distrital de Manhattan tem origem num pagamento de 130 mil dólares feito pelo então advogado pessoal de Trump, Michael Cohen, a Stephanie Clifford no final de outubro de 2016, dias antes das eleições presidenciais de 2016. O objetivo era comprar o silêncio da mulher, conhecida como Stormy Daniels nos filmes para adultos, quando esta ia contar sobre um caso com Trump uma década antes. Além de Daniels, a ex-modelo da Playboy Karen McDougal também revelou uma história parecida ao National Inquirer, mas o administrador da empresa detentora do tabloide, David Pecker, aliado de Trump, pagou 150 mil dólares a McDougal e nunca publicou a história.

Qual é a ilegalidade?
Pagar para silenciar alguém não é um crime, mas no estado de Nova Iorque a falsificação de registos contabilísticos é um delito. O pagamento foi feito por Cohen e Trump devolveu-lhe a quantia (e acrescentou um bónus) através de 11 cheques em seu nome e do seu filho Jr., tendo classificado os pagamentos como "adiantamento" de honorários ao advogado. Mais grave se tornará se a falsificação de um registo foi feita com a intenção de cometer outro crime ou de ajudar ou ocultar outro crime, o que neste caso poderá ser a violação da lei de financiamento de campanhas eleitorais, um crime com uma pena mínima de um ano de prisão e máxima de quatro.

Trump vai ficar detido?
Não. O processo de acusação envolve a recolha de impressões digitais e fotografias e o arguido por norma é algemado. Mas depois de ouvir as acusações e de Trump se declarar inocente, o juiz fixará as medidas de coação até ao julgamento, por exemplo, uma caução, ou simplesmente deixá-lo sair sem qualquer medida.

cesar.avo@dn.pt

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