Elogios (e críticas) fúnebres a Gorbachev
Personalidade complexa, o último presidente da URSS recebe as mais desencontradas palavras na hora da morte.
A morte, aos 91 anos, do último líder da União Soviética, suscitou as mais diversas reações um pouco por todo o mundo, do elogio frio de Vladimir Putin às críticas de populares russos, de comunistas e de dirigentes dos estados bálticos, aos rasgados elogios de restantes líderes ocidentais.
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Para o presidente russo, que em 2005 lamentou o colapso da União Soviética como a "maior catástrofe geopolítica do século XX", as palavras dirigidas a Mikhail Gorbachev soaram a obrigação burocrática. A a única nota sentimental foi expressada através do porta-voz Dmitri Peskov: "Putin expressa a sua profunda tristeza pela morte de Gorbachev".
"Foi um político e um estadista que teve uma grande influência na evolução da História do mundo. Guiou o país por um período de mudanças complexas e dramáticas, e grandes desafios de política externa, económicos e sociais." Vladimir Putin
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No entanto, depois de dizer que o laureado com o Prémio Nobel da Paz em 1990 foi um "extraordinário estadista", as palavras que se seguiram não soaram a loas: "Deu um impulso para acabar com a Guerra Fria e ele queria sinceramente acreditar que ela acabaria e que um novo período romântico teria início entre a renovada União Soviética e o Ocidente em geral. Essas expectativas românticas não se concretizaram. A natureza sanguinária dos nossos adversários veio à luz, e é bom que tenhamos percebido isso a seu tempo".

O Presidente Mário Soares e Gorbachev mantiveram uma conversa de mais de duas horas no Kremlin, em novembro de 1987.
© Arquivo DN
Ignorado pelas gerações mais jovens e amaldiçoado por muitos russos que sofreram com o tratamento de choque pós-soviético aplicado por Ieltsin - o que lhe valeu, numa tentativa de regresso à política, 0,5% nas eleições de 1996 -, Gorbachev recebe críticas e elogios dos políticos que permanecem em atividade no país. E também do líder anti-Putin, Alexei Navalny a cumprir pena de prisão, que destacou o facto de Gorbachev ter sido "um dos muito poucos que não usou o poder" para "enriquecimento pessoal" e de ter aceitado as regras do jogo. "Abdicou pacifica e voluntariamente, respeitando a vontade dos eleitores. Só isto é um grande feito segundo os padrões da ex-URSS."
"O mundo perdeu um líder mundial único, comprometido com o multilateralismo e incansável defensor da paz." António Guterres
Já Grigory Yavlinsky, líder dos liberais (Yabloko), elogiou Gorbachev por "oferecer liberdade a centenas de milhões na Rússia, nas suas imediações e em metade da Europa". Para Sergei Mironov, o líder do Rússia Justa, Gorbachev "foi como uma lufada de ar fresco, encarnando as esperanças de mudanças colossais", mas as suas políticas levaram à "perda de um grande país" e tornaram-se numa "tragédia para gerações de russos".
"Mostrou pelo exemplo como um único estadista pode mudar o mundo para melhor. Mikhail Gorbachev também mudou minha vida de maneira fundamental. Nunca vou esquecê-lo." Angela Merkel
O vice-líder parlamentar dos comunistas, Nikolai Kolomeitsev, classificou Gorbachev de "traidor" que "destruiu o Estado". Do Rússia Unida, partido de Putin, Oleg Morozov disse que Gorbachev deveria ter mostrado "arrependimento" pelos resultados da liderança.

Álvaro Cunhal ouve o discurso do chefe da delegação do PCUS ao X Congresso do PCP, no Porto, em dezembro de 1983.
© Arquivo DN
Visão crítica é também demonstrada por políticos de países que tentaram sair da órbita da URSS (países bálticos, Geórgia, Azerbaijão) que não esquecem a repressão sofrida nos meses finais do império. "Os lituanos não irão glorificar Gorbachev. Jamais esqueceremos o simples facto de que o seu exército assassinou civis para prolongar a ocupação do nosso país. Os seus soldados atiraram em nossos manifestantes desarmados e esmagaram-nos sob os seus tanques. É assim que nos lembraremos dele", escreveu o chefe da diplomacia Gabrielius Landsbergis.
"Contra a vontade de Gorbachev, a Letónia também recuperou a independência", disse o presidente letão Egils Levits.
"[As reformas democráticas] foram ações de um líder ímpar, com imaginação para ver que um futuro diferente era possível e a coragem de arriscar toda a carreira para o obter. O resultado foi um mundo mais seguro e uma maior liberdade para milhões de pessoas." Joe Biden
Já na Europa ocidental e América do Norte prevalece a visão do homem que teve "coragem para a abertura democrática e a construção de pontes entre o oriente e o ocidente", como destacou o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier, que agradeceu a não intervenção do soviético durante a queda do Muro de Berlim e a reunificação alemã.
Ao que tudo indica, Gorbachev não receberá um funeral de Estado. Vai ser enterrado no sábado, no cemitério Novodevichy de Moscovo, ao lado do jazigo da mulher, Raisa, falecida em 1999. Esse cemitério é também a casa final dos antigos líderes Kruschev e Ieltsin. A filha de Gorbachev, Irina, disse que será realizada uma cerimónia de despedida na Casa dos Sindicatos, que serviu de local para funerais de dirigentes soviéticos, de Lenine a Chernenko.
cesar.avo@dn.pt
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