É notável a "admiração de Francisco pela natureza feminina"

Maria João Avillez antecipa ao DN os temas da sua conversa com o Papa e garante que nada lhe indicou que estivesse de saída.

Num momento de transformação da Igreja, com uma crise a abalar os alicerces da Santa Sé e no meio de muita especulação sobre um eventual afastamento de Francisco, a jornalista Maria João Avillez esteve no Vaticano cumprindo uma "longa e abrangente" entrevista ao Papa. Dessa conversa, que percorre os grandes temas da atualidade e as dificuldades que a Igreja enfrenta - incluindo os casos de abuso sexual na Igreja e o papel das mulheres na hierarquia do Vaticano -, falou Maria João Avillez ao DN, contando as suas impressões sobre o Papa e antecipando alguns dos temas da entrevista, que irá passar em exclusivo na TVI e na CNN Portugal, a 4 e 5 de setembro.

Muito se tem especulado sobre uma eventual renúncia do Papa Francisco, mas o próprio já garantiu mais do que uma vez que estará presente na Jornada Mundial da Juventude 2023, em Portugal. Pareceu-lhe que a decisão estava perto?
O que ele me passou, antes do mais, foi o seu entusiasmo sobre a Jornada e sobre o seu reencontro com jovens de todo o mundo. É verdade que o Santo Padre deixa por vezes no ar a ideia de uma despedida. Não penso, porém, que uma renúncia seja sequer exequível enquanto o Papa Bento XVI estiver entre nós. Dois Papas eméritos? Parece-me absolutamente impossível e, por maioria de razão, tal ideia parecerá ainda mais impossível ao atual Sumo Pontífice (ou, pelo menos, espero que pareça...).

Da conversa que tiveram, não ficou essa suspeita?
Nada durante a minha conversa com ele no dia 11 de agosto, no Vaticano, me levou a "desconfiar", "intuir" ou "suspeitar" que estivesse mais ou menos próxima uma voluntária despedida do Papa Francisco da chefia da Igreja. Admito enganar-me, mas a muito custo. E se isso ocorrer, venho aqui ao DN pedir desculpa pelo meu engano.

Há pelo menos o compromisso do Papa Francisco de estar presente na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em agosto de 2023...
Quanto à sua presença em Portugal na JMJ, julgo que pode haver aí um equívoco de verbos: o Santo Padre - que eu tenha conhecimento - nunca "garantiu" que estaria presente... disse, sim, que "o sucessor de S. Pedro estaria presente". Desta vez, quando o questionei, com um grande sorriso, limitou-se a semi-responder; e eu a fazer o que me competia: "Avisá-lo" que era dele, Francisco, que os jovens estavam à espera. Dele! Daquela sua inteligência e invulgar intuição para, sempre afetuosamente, os ouvir, compreender, saber falar com eles.

"Há uma grave crise na Igreja. Os media centram-na na horrenda saga dos abusos, mas a crise é infelizmente ainda mais complexa, sombria e confusa (...) Francisco foi tão severo na abordagem do tema dos abusos, quanto lúcido sobre a divisão da Igreja."

Quais são as principais preocupações que Francisco lhe revelou neste momento de transformação da Igreja? O tema das denúncias de abusos - e a questão de D. Manuel Clemente em particular - foram focados na conversa?
Há hoje uma grave crise na Igreja. Os media centram-na exclusivamente na horrenda saga dos abusos, mas a crise é infelizmente ainda mais complexa, sombria e confusa do que isso. Estando absolutamente consciente do delicadíssimo momento vivido hoje pela Igreja no mundo e em Portugal - tema obviamente por mim abordado no decurso do nosso diálogo - o Santo Padre usou da sabedoria: falou para todos. Foi tão severo - severíssimo - na abordagem do tema dos abusos, quanto lúcido sobre a divisão da Igreja, quanto entusiasmado a falar da próxima Jornada da Juventude, quanto empenhado a evocar o Sínodo atualmente em curso no mundo católico, o qual visa justamente uma transformação da Igreja. Ou seja, não falei com um desesperançado, nem com desistente amargurado.

Quem foi que encontrou, então?
Conheci um ser humano extraordinário - um latino-americano acolhedor, atento, despojado, afável, cheio de humor; ouvi um homem de profunda fé, com grande conhecimento teológico, um ser cheio de sabedoria. Será sempre para mim absolutamente inesquecível, por exemplo, o modo como falou dos jovens (pedindo-lhes que "abrissem uma janela"), a evocação da sua vivência de Fátima, a maravilhosa sensibilidade e a inteligência. E como falou - longamente - da mulher. As palavras que usou, as histórias que contou, a admiração que exibiu pela natureza feminina, a confiança que nela deposita... Faz uma grande homenagem à condição feminina.

Esta é a segunda entrevista de Francisco a um órgão de comunicação português (depois de Henrique Cymerman, em 2013) e a Maria João foi escolhida para esta conversa. Foi das entrevistas que a marcaram mais na sua carreira?
Foi, evidentemente. Foi um inacreditável privilégio, uma honra, sobretudo uma responsabilidade. A entrevista foi-me concedida obviamente por causa da realização da Jornada. Poucos acreditarão, no entanto, que ainda hoje eu não saiba ao certo quem na verdade obteve este encontro, que fora aliás já por mim pedido, há quase dois anos. Provavelmente terá sido mais do que uma pessoa. Conto aliás esta história num texto que sairá no fim de semana no Observador.

E como se preparou?
Preparei-me lendo ou relendo encíclicas e textos, falando com quem sabe mais do que eu, pedindo colaboração à minha filha, que também sabe mais do que eu, ouvindo e refletindo. Não quis sensacionalismos deslocados, nem entrevistei um político, falei com o sucessor de Pedro e chefe de uma Igreja que dois mil anos depois aqui permanece e com a qual é - sempre foi e continuará a ser - imprescindível contar. E fiz o que me pareceu que devia fazer na conversa com o Santo Padre.

Houve algum assunto tabu?
Como habitualmente, haverá alguns treinadores de bancada que "saberiam" quais as perguntas a fazer ao Papa, que não as minhas; reacionários descontentes com um "revolucionário", esquerdistas que "afinal" se depararam com um conservador. Enfim, nada de que seja preciso tomar nota. Do Papa Francisco é que sim. Há que tomar uma grande nota.

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