É a economia, estúpido. Mas também a guerra e um problema de imagem de Biden
Joe Biden faz hoje o seu primeiro discurso do Estado da União com um Congresso dividido e um speaker da outra bancada. Momento pode ser marcante para a segunda metade do mandato em ambiente de pré-campanha.
Quando entrar hoje no Capitólio para o discurso do Estado da União, o presidente norte-americano, Joe Biden, vai encontrar um Congresso dividido, um líder hostil da Câmara dos Representantes e uma nação cética sobre a sua presidência. Com níveis de popularidade baixos, em torno dos 42%-45%, Biden também chega a este ponto intermédio no seu mandato com uma investigação sobre os documentos classificados encontrados na sua casa e escritório. E uma sondagem do Washington Post e ABC publicada ontem revela que 62% dos americanos pensam que Biden conseguiu fazer "não muito" ou "pouco ou nada" durante a sua presidência. É um problema de imagem do presidente democrata, porque a realidade é diametralmente oposta.
Relacionados
"Ele está numa posição favorável", disse ao DN a cientista política luso-americana Daniela Melo, professora na Universidade de Boston. "Vai a caminho deste discurso tendo não só um mas dois anos de várias vitórias legislativas e até eleitorais, que pareciam improváveis quando chegou à presidência há dois anos."
O último ano foi abundante em ação legislativa, com vários pacotes muito relevantes aprovados no Congresso e assinados por Biden. Depois da histórica passagem do Infrastructure Investment and Jobs Act, que viabilizou muitas obras de monta a começarem a ser executadas neste momento, o presidente também conseguiu o CHIPS Act, desenhado para aumentar a competitividade da produção doméstica na indústria de semicondutores, o Inflation Reduction Act, que contém algumas das leis mais ambiciosas das últimas décadas em matéria de alterações climáticas, e o Bipartisan Safer Communities Act, a maior legislação sobre armas de fogo em três décadas. Isto em cima do American Rescue Plan e várias ordens executivas no primeiro ano de mandato. A própria crise da covid parece estar no retrovisor, com a emergência de saúde a ser terminada em maio.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
"Ele tem muito por onde pegar do ponto de vista de vitórias legislativas", reiterou Daniela Melo. "Conseguiu passar em termos legislativos dos pacotes mais importantes e que terão mais impacto dos últimos 30 anos", resumiu.
O cientista político Thomas Holyoke, professor na Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, também considera que Biden está num bom momento e tem múltiplas conquistas para promover, incluindo a melhoria das perspetivas económicas. Poucos poderiam ter previsto isso há apenas um ano.
É a economia, estúpido
A economia norte-americana cresceu 2,9% no último trimestre de 2022, com o consumo - a sua pedra angular - a subir 2,1%. Isto apesar da inflação, dos problemas com a produção e cadeia de abastecimento, dos impactos da covid na China e da guerra na Ucrânia, e a subida das taxas de juro.
Foi neste contexto que Joe Biden presidiu ao crescimento do emprego mais acelerado da história dos Estados Unidos, e o relatório laboral de janeiro surpreendeu até os mais otimistas. Foram criados 517 mil novos empregos no primeiro mês de 2023, o que reduziu o desemprego para uma taxa mínima de 3,4%, algo que não se via desde maio de 1969. A inflação também vem caindo há seis meses consecutivos, tendo-se fixado nos 6,5% no último mês.
"O défice não cresceu e o preço da gasolina estabilizou, apesar de a guerra ainda estar longe de terminar", salientou Daniela Melo. "Certamente Biden irá falar sobre o facto de que os impostos não subiram para a classe baixa e classe média."
O que Biden não tem conseguido é promover estes feitos de uma forma eficaz, elevando-os acima do ruído e em contraste com a balbúrdia causada pelos republicanos na Câmara dos Representantes. O discurso do Estado da União será a sua melhor chance de o fazer.
"Ele vai tentar posicionar-se como um centrista sensato, traçando um contraste com a maioria republicana na Câmara dos Representantes", disse ao DN Thomas Holyoke. "Pode tentar apontar que vai lidar com muitos dos problemas do país, especialmente em termos de infraestruturas, enquanto os republicanos na Câmara vão enveredar por investigações loucas de extrema-direita. Vai tentar posicionar-se como o adulto na sala", considerou.
Biden e o líder da maioria republicana, Kevin McCarthy, reuniram-se na semana passada para tentarem resolver o problema do teto da dívida, que tem de ser levantado para que os Estados Unidos possam pagar as contas e não entrar em default. É uma formalidade que não está relacionada com o Orçamento de Estado norte-americano nem com a sua capacidade de saldar dívidas, mas precisa da autorização do Congresso. Holyoke acredita que Biden pode falar disso no seu discurso, entre os temas mais prementes.
"Vai focar-se nas infraestruturas, na necessidade de apoiar a Ucrânia e tocará provavelmente na questão do teto da dívida, mas apenas para dizer que é errado os republicanos fazerem a nação refém quanto ao pagamento de dívidas", sublinhou.
A situação é mais aguda porque ameaça a recuperação económica, numa altura em que se acredita que será possível combater a inflação sem entrar em recessão. "Grandes nomes da economia têm dito que este terá sido um episódio de inflação transitória", frisou Daniela Melo. A professora acha que o foco de Biden na economia fará um contraponto claro à disputa sobre o teto da dívida.
"Quanto mais ênfase ele põe no quão positivos são os indicadores da economia, mais ele minimiza a questão do teto da dívida", aponta. "Ele tem um argumento forte, porque na verdade no último ano o défice não cresceu. Está mais ou menos estável", continuou. "Não há muitas razões do ponto de vista económico para o país estar quase numa situação de default. Obviamente é por motivos políticos. É algo que os legisladores deviam ver como consensual, os Estados Unidos não podem não pagar as contas. É teatro político."
Pontos altos e derrapagens
Além de passar em revista os seus sucessos legislativos e a melhoria das condições económicas, Joe Biden deverá dedicar algum tempo a falar da guerra na Ucrânia, quase um ano depois da invasão russa. O apoio dos Estados Unidos foi vital para a resistência ucraniana, com pacotes de apoio monetário, armamento e treino, além de uma função aglutinadora da aliança transatlântica.
"Penso que Biden vai dedicar uma boa parte do tempo à Ucrânia, vai sentir que tem de defender que é essencial apoiar a Ucrânia no interesse da nossa própria segurança nacional", considerou Thomas Holyoke. A nova maioria republicana na Câmara dos Representantes inclui céticos do apoio à Ucrânia e ao seu presidente, Volodymyr Zelensky, pelo que a mensagem deverá ressoar.
"É impossível ele não passar ali um bom parágrafo a falar sobre a Ucrânia e as vitórias que tem tido, e o facto de que os Estados Unidos têm sido absolutamente essenciais em preservar a soberania do país e a sua capacidade de dar resposta à Rússia", disse Daniela Melo.
Enquanto a abordagem à guerra na Ucrânia é um ponto positivo na política externa de Biden, a sua retirada desastrosa do Afeganistão é o momento mais baixo. "É provavelmente o seu ponto mais vulnerável", segundo Holyoke, crente de que os republicanos vão atacar o presidente por aqui na sua resposta.
Outro tema delicado para Biden é a questão dos documentos classificados. O procurador-geral Merrick Garland designou um procurador especial, Robert Hur, para investigar como é que documentos classificados do tempo em que Biden era vice-presidente foram parar a sua casa e ao seu escritório. Os documentos, encontrados por advogados de Biden, foram entregues aos Arquivos Nacionais e buscas do FBI não encontraram mais nada. No entanto, apesar das diferenças com o caso de Trump - que se recusou a devolver os documentos -, o incidente é um embaraço questionável para Biden.
"A grande questão é se ele vai ou não vai mencionar a questão dos documentos classificados", disse Daniela Melo. "É o elefante na sala." O presidente terá de fazer uma gestão do ciclo noticioso; se omitir, isso será apontado; se falar, isso será esmiuçado.
"Eu acho que se ele falar vai ser de uma maneira enviesada, em que se percebe que se refere àquilo mas não passa cinco ou dez minutos nisso", sugeriu a politóloga. "A estratégia do partido tem sido minimizar a questão, e, se ele fala muito sobre esse assunto, isso em si vai ser um novo ciclo de notícias, publicações e debates do que disse ou não disse sobre os documentos", continuou. "A estratégia é minimizar."
Ainda assim, Thomas Holyoke não acredita que a questão seja tão prejudicial para o presidente como se possa pensar. "Os documentos não prejudicam Biden tanto quanto ajudam Donald Trump", analisou. "Trump não parece tão mal porque Biden e Mike Pence também foram apanhados. Biden e Pence têm cooperado bastante com o FBI, não tentaram mentir e parar as investigações", frisou. "Documentos altamente secretos espalhados por aí não é bom, mas parece que toda a gente está a fazê-lo."
O professor explicou que um dos motivos para esta situação pode ser o excesso de classificação de documentos, combinado com um sistema falível de rastreio e arquivo. "É também o processo de transição entre administrações", informa. "Uma das razões pelas quais Barack Obama lidou melhor com isso é que ele tinha uma tonelada de ficheiros digitais."
Biden 2.0: a recandidatura
Não se espera que Joe Biden anuncie tão cedo a sua recandidatura à Casa Branca, mas os analistas veem sinais de que isso está em andamento. Logo a seguir ao discurso do Estado da União, Biden e os membros do seu governo vão embarcar numa "tour" de 20 Estados, da Califórnia a Nova Iorque, para promover a legislação aprovada, os números da economia e os projetos em curso. As infraestruturas vão ser um grande foco, com obras a começar no túnel entre Nova Iorque e Nova Jérsia, na ponte entre o Kentucky e Ohio, no sistema de canalização de Filadélfia e nos túneis de carris em Maryland, entre outras.
"Tudo isto me cheira a pré-campanha e diz-me que ele vai passar parte do Estado da União focado na economia e na implementação dos pacotes legislativos que passou nos últimos dois anos", segundo Daniela Melo. O discurso "é uma oportunidade não só para falar de tudo o que tem corrido bem, mas de lançar quase uma pré-campanha encapotada". Será uma forma de falar diretamente ao país sobre o que pretende fazer nos próximos dois anos.
Isso pode incluir o tópico quente da regulação em Silicon Valley, algo que tem sido bloqueado sistematicamente no Congresso. "É bem provável que seja esse um dos grandes temas e um dos grandes desafios que ele leve para a administração este ano", vinca Melo. "A questão da privacidade nas redes sociais, a questão da fiscalização anticoncentração, legislar para regular Silicon Valley e pôr travão a alguns dos problemas que temos visto nos últimos anos."
Com o Congresso dividido, a segunda parte da presidência será menos produtiva do que a primeira. "A sua presidência daqui para a frente será mais em torno de ordens executivas", opina Holyoke. Poderá focar-se em questões ganhadoras para os democratas, como os direitos reprodutivos, depois de ficar claro que a revogação do direito federal ao aborto teve impacto nas intercalares. Poderá também enfrentar investigações intrusivas da nova maioria republicana, numa altura em que Donald Trump já faz campanha e podemos voltar a ter um embate Biden-Trump.
"Tudo pode acontecer vindo da América", sublinhou Daniela Melo. "É tudo menos aborrecido."
dnot@dn.pt
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal