Dez anos de Francisco, o reformador

Há 10 anos que o argentino Jorge Mario Bergoglio se tornou a primeira figura da Igreja Católica, iniciando um tempo novo. DN ouviu diferentes personalidades sobre o legado desta primeira década de pontificado do Papa Francisco

O que tem de especial o Papa que acorda às 4h30, todos os dias, prepara-se, reza e duas horas e meia depois celebra missa?

Há 10 anos, desde 13 de março de 2013, que o argentino Jorge Mario Bergoglio se tornou a primeira figura da Igreja Católica, iniciando um tempo novo. O Papa que viaja pelo mundo, escolhendo os destinos mais improváveis, que exortou os responsáveis máximos do clero a despojarem-se de riquezas e bens materiais, que ousou falar de temas tabu para a hierarquia da Igreja, colocando à cabeça aquele que neste momento abala Portugal: os abusos sexuais.

É este o homem que consegue marcar todos os setores da sociedade, independentemente das crenças, como demonstram nestas páginas diversas personalidades ouvidas pelo DN. Para lá da fé ou das afinidades, fica o retrato de um Papa como não há memória, durante esta primeira década de pontificado.

Misericórdias

"Retrato de um homem bom, preocupado com o próximo"

Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas

A própria eleição do Papa Francisco é, para Manuel Lemos, "o primeiro momento marcante do pontificado de Francisco". Mas para o presidente do secretariado nacional da União das Misericórdias Portuguesas, esta é uma década de viragem na Igreja: "Um Papa que vinha da América Latina, com um perfil humano completamente ao contrário de Bento XVI - que era um intelectual, um homem de reflexão -, de um país pobre, onde o cristianismo e o catolicismo são uma âncora." Mas sucedeu-se logo um outro momento assinalável: "A própria escolha do nome. Ele entendeu que usar o nome de S. Francisco de Assis como referência marcaria - como se verificou - indelevelmente o seu papado."

Enquanto "homem de Misericórdia", e atendendo a que continua a ser, além de responsável em Portugal, o presidente da Confederação Mundial, diz que "o jubileu das Misericórdias foi também um momento muito particular", e não deixa de notar "como o seu papado tem sido também conturbado, nomeadamente à conta da questão da pedofilia na Igreja". "O simples facto de ele ter decretado a tolerância zero é significativo, bem como a necessidade de a Igreja indemnizar as pessoas que foram objeto desses abusos", sendo certo que "não se terá ido tão longe quanto ele gostaria de ir, parece-me".

Há, no entanto, um aspeto que toca particularmente este responsável: a preocupação com idosos, um tema que o Papa trouxe à liça várias vezes. "Ele é um homem bom, no melhor sentido da palavra, preocupado com o próximo. Guardo para memória futura o discurso dele, no jubileu, em que se centrou na concretização da misericórdia. E todo o percurso dele, enquanto bispo e cardeal de Buenos Aires, já foi muito isso."

Jesuíta

"Um reformador próximo das pessoas e da realidade"

António Ary, padre jesuíta

Há oito anos que António Ary é padre jesuíta, tal como foi Jorge Mario Bergoglio antes de se tornar bispo e Papa. Para o jovem sacerdote, "não fazia sentido ser de outra maneira", tendo em conta a influência que a Companhia de Jesus sempre exerceu na sua vida. Quando olha para os últimos 10 anos, vê-os refletidos "num pontificado muito particular: quer por não ser europeu quer por ser jesuíta". Ou, por outro lado, sabendo que à partida havia "um grande desejo e expectativa de reforma [da Igreja] nas reuniões que antecederam a eleição de Francisco, o padre Ary vale-se de uma palavra que, em sua opinião, define bem o Papa. "É um reformador."

"É um pontificado que se instala a vários níveis - e tem a ver com as características próprias do Papa Francisco. Um deles é a proximidade às pessoas e à realidade", afirma este sacerdote, para quem "a reforma só se faz assim, na realidade em concreto, e não a partir de uma teoria abstrata que é aplicada. Por isso todos os discursos, mensagens e ensinamentos que o Papa transmite é a partir do concreto e do real".

O conceito de "saída da Igreja" que Francisco implementou nos últimos anos encaixa neste registo reformador. "É muito significativo o critério que ele escolheu nas suas viagens. Tem visitado o mundo inteiro, menos a Europa, vai a lugares improváveis, muitos deles no domínio do impossível em outras alturas. Mesmo em Itália, onde vive, escolhe sempre lugares com intuitos muito específicos. Não visitou França, não visitou Espanha, e mesmo Portugal apenas o fez para vir a Fátima, ao centenário das aparições", sublinha. Junta-se ainda outro fator a esse registo de quem fez tudo diferente: "A ideia de ver a Igreja como um hospital de campanha, não como um edifício fixo, mas como uma estrutura maleável que se pode aproximar das pessoas."

Conservador

"O Papa que (nos) ensinou a não ter medo"

Pedro Gil, diretor do gabinete de Imprensa da Opus Dei

Pedro Gil guarda na memória o dia 19 de março de 2013, aquele em que arrancou o pontificado de Francisco. "É Dia de São José, o homem que ajudou a mudar o mundo vivendo com Deus o dia a dia. E a mensagem é de que só há um centro da vocação cristã: Cristo. Com Cristo, que é Deus, tudo tem solução." Elege esse momento como um dos mais marcantes destes últimos 10 anos. Junta-lhe outro dia de março, mas de 2020. A 27, já em plena pandemia, "a solene oração na praça vazia e chuvosa de São Pedro. Francisco diz ao mundo para não ter medo: é certo que não somos autossuficientes e que a nossa barca afunda, mas em Deus podemos confiar, com ele "a vida não morre jamais". Em ambos casos está a ideia mestra deste Papa: Deus, em Jesus, ama-te, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias; ilumina, fortalece, liberta", afirma o diretor do gabinete de imprensa da Opus Dei.

E como será que as gerações futuras vão lembrar este Papa? "Para o mundo será o Papa que viveu a terceira guerra mundial "aos bocadinhos"; priorizou os pobres, migrantes, presos e vítimas da guerra; deu primazia aos países pobres e periféricos sobre os ricos e poderosos; ligou a preocupação pelo ambiente à natureza vista como livro escrito por Deus, e não resultado anónimo da evolução; despertou o mundo para a luta implacável contra os abusos", sublinha Pedro Gil. Já para a Igreja, "será o Papa que quis integrar todos; inaugurou uma nova forma de viver o sínodo; reforçou a presença da mulher no coração da Igreja; deixou um documento imperdível sobre a santidade também na vida corrente; revalorizou o sacramento da confissão, onde Deus nunca se cansa de perdoar; recordou que o demónio não é um mito. Será para todos o Papa que navegou sempre no meio da tempestade".

Judeu

"Considero que foi uma grande lufada de ar fresco. Tem revolucionado bastante até a própria estrutura da Igreja Católica"

Isaac Assor, membro da comunidade judaica em Portugal

"Tem sido um pontificado de muitos altos e muito poucos baixos. Particularmente no que toca ao relacionamento com as outras religiões, ao diálogo inter-religioso, que tem sido altamente focado e trabalhado por ele". Isaac Assor, membro da comunidade judaica em Portugal, traça ao DN um retrato do que considera "um seguimento muito forte dos pontificados anteriores de João Paulo II e Bento XVI". "O Papa Francisco tem sido um verdadeiro fiel da continuação deste diálogo", afirma, recuperando alguns momentos marcantes, como a assinatura do acordo de fraternidade, em 2019, que ficou conhecido como a Declaração de Abu Dhabi, "ou outros em que tem trabalhado com diversos membros das comunidades judaicas, principalmente com o rabinado em Jerusalém e a própria comunidade em Roma".

Aponta ainda "a questão dos abusos sexuais". Tem sido um verdadeiro defensor do apuramento das responsabilidades. Tal como ele diz, "tolerância zero", e esperemos que se concretize também em Portugal. Noutros países está a funcionar de forma mais célere. A forma como ele se tem empenhado em situações como esta, que são terríveis para qualquer confissão religiosa, neste caso a católica.

A sincerade e a forma clara como ele aborda todos os temas é a caraterística que melhor o define. "Qualquer pessoa que o ouve falar o entende bem. É um verdadeiro comunicador. Isso é fundamental numa altura em que tanto se discutem as religiões, sejam elas quais forem. Considero que ele foi uma grande lufada de ar fresco, que consegue ser uma voz de fé - que não tem fronteiras nem limites - e que tem revolucionado bastante até a própria estrutura da Igreja Católica", conclui Isaac Assor.

Muçulmano

"Vejo-o como uma pessoa de paz. Só uma pessoa de paz visitaria a Arábia Saudita, como ele fez".

Abbas Muhammad Botão, imã da mesquita de Leiria

Há 10 anos que Abbas Botão é responsável pela única mesquita do distrito de Leiria, sediada na cidade. O mesmo período de tempo que Francisco tem como Sumo Pontífice da Igreja Católica. Chegou de Moçambique, quando já era formado em Teologia Islâmica na África do Sul. Aos 39 anos, não guarda grandes memórias do papado de João Paulo II e Bento XVI. Talvez (também) por isso se concentre sobretudo no Papa Francisco.

"Eu vejo-o como uma pessoa de paz. Em cada comício dele nunca falta essa exortação a favor da paz, sempre em nome das pessoas, sem olhar a cores ou bandeiras. Ele não cria nenhuma diferença", afirma o imã ao DN, que sublinha o esforço do Papa "em resolver sempre tudo de uma forma pacífica".

De resto, Abbas Botão recua até 2017, para lembrar a visita a Fátima. Quando olha para a mensagem que na época o Papa passou, acredita que "parecia estar a preparar a população portuguesa para uma epidemia ou calamidade que poderia acontecer mais tarde. Como sabemos, em 2020 veio a covid-19. E foi curioso que as pessoas ficaram muito pacíficas, não entraram em pânico. Julgo até que passaram a ser mais solidárias umas com as outras. Em todas as suas dimensões ele é uma pessoa de paz. Mesmo quando o povo cristão é maltratado, ela exulta para a paz, para a união, e nunca à continuação da guerra. Só uma pessoa de paz visitaria a Arábia Saudita, como ele fez. Não fora isso, nunca teria a oportunidade e a honra de visitar Meca", afirma Abbas Botão.

Ateu

"A sua ação tem sido muito importante na denúncia da falta de políticas solidárias"

Ana Gomes, ex-diplomata e ex-eurodeputada

"O Papa Francisco tem representado uma lufada de ar fresco na atenção aos mais vulneráveis e aos mais necessitados de apoio. E a sua ação tem sido muito importante na denúncia da falta de políticas solidárias, de apoio aos refugiados imigrantes, e que nos fazem ser cúmplices do cemitério em que o Mediterrâneo se tem transformado." Apesar de ateia, Ana Gomes vê neste Papa características que nunca vislumbrou noutros, nomeadamente "no combate à pedofilia e abusos sexuais de menores, uma questão que é da Igreja mas também da própria sociedade, embora eu saiba que ainda há coisas que lhe escapam - veja-se as concordatas que a Santa Sé continua a fazer com determinados países".

Há, porém, outros combates que destaca, nomeadamente às alterações climáticas no acentuar das desigualdades, sejam elas nas sociedades mais ricas ou na diferença entre nações ricas e pobres. "Vindo de um país como a Argentina, ele tem uma particular sensibilidade às questões do desenvolvimento e ao absurdo fosso entre a retórica e a prática dos países mais ricos. Para mim tem conseguido fazer uma rutura com o passado, não obstante haver áreas onde eu gostaria de ver mudanças, nomeadamente em relação à moral sexual da Igreja - não apenas no que respeita ao celibato dos padres, mas também relativamente à posição relativa à interrupção voluntária da gravidez", afirma Ana Gomes, que vê neste papado "uma diferença significativa em muitas áreas, lutando contra a resistência dos setores mais reacionários da Igreja. Só por isso é merecedor de admiração". A antiga diplomata sublinha que toda a sua análise se baseia na imagem pública do Papa, uma vez que, enquanto ateia, "há muitos aspetos que eu não acompanho no que respeita à ação dele no interior da Igreja".

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Dez anos em pontos e imagens

Vaticano, 13/3/2013
Habemus Papam. Bergoglio foi eleito à quinta volta,
no segundo dia do conclave de 2013, assumindo o nome papal de Francisco.

Lampedusa, 8/7/2013
Na primeira viagem pastoral fora de Roma, visita a ilha italiana de Lampedusa e condena a "globalização da indiferença" face à situação dos migrantes.

No regresso de uma viagem ao Brasil, 29/7/2013
"Se uma pessoa é homossexual e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?"

Vaticano, 7/7/2014
"Diante de Deus e do seu povo expresso a minha tristeza pelos pecados e graves crimes de abuso sexual clerical cometidos contra vocês e, humildemente, peço perdão."

Cuba e EUA, 19 a 27/9/2015
Depois de ter tido um papel mediador para o histórico reatar diplomático entre EUA e Cuba, assinado por Obama e Raul Castro, Francisco viajou até Havana e Washington.

Fátima, 13/5/2017
Visita o Santuário de Fátima, onde oficializa a canonização de Francisco e Jacinta, os dois pastorinhos que, com Lúcia, protagonizaram o fenómeno das aparições de Fátima. Cerimónia juntou mais de 500 mil fiéis.

"Não podia deixar de vir aqui venerar a Virgem Mãe e confiar-lhe os seus filhos e filhas."

Bagdade, 5 a 8/3/2021
Na primeira viagem desde a pandemia de covid-19, viajou até ao Iraque, onde realizou um encontro histórico com o principal clérigo xiita do Iraque, o Grande Aiatola Ali al-Sistani, e visitou o local de nascimento do profeta Abraão.

900 santos

Francisco proclamou cerca de 900 novos santos, incluindo os seus antecessores João XXIII, João Paulo II e Paulo IV, bem como Madre Teresa de Calcutá ou os portugueses Francisco e Jacinta. O número inclui os 813 mártires de Otranto, mortos por tropas otomanas em 1480.

111 novos cardeais

Francisco nomeou 111 cardeais, os "príncipes da Igreja", de chapéu vermelho, que são os seus assessores mais próximos no Vaticano. Entre eles os portugueses D. Manuel Clemente, D. António Marto e D. José Tolentino de Mendonça.

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