"Desbolsonarização". Lula dispensou 63 militares em três semanas
Nunca na história da democracia do Brasil um comandante do exército durou tão pouco tempo no cargo: Júlio César Arruda foi nomeado, por antiguidade, pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, 48 horas antes da posse de Lula da Silva, a 30 de dezembro de 2022. No dia 21 de janeiro, o novo chefe de Estado demitiu-o, na sequência dos ataques às sedes dos três poderes, em Brasília, dia 8. E a "desbolsonarização" das forças armadas, como vem sendo chamada na imprensa brasileira, não se vai ficar pelas 63 trocas registadas até aqui.
Em visita oficial à Argentina, Lula disse que "as forças armadas não existem para servir a um político e sim para proteger o povo brasileiro". "O que aconteceu é que Bolsonaro não respeitou a Constituição e não respeitou as forças armadas, mas eu tenho a certeza de que vamos colocar as coisas no lugar", afirmou.
"As carreiras do Estado não se podem meter na política no exercício da sua função, porque essa gente tem estabilidade, essa gente não pertence a nenhum governo, pertence ao Estado brasileiro, eles precisam aprender a conviver democraticamente com qualquer pessoa".
O comportamento de Arruda "caracterizou insubordinação inadmissível perante ameaças à democracia e de partidarização das forças armadas", classificou, por sua vez, Gleisi Hoffmann, a presidente do PT, o partido de Lula.
Em causa, três episódios: a relutância do general em expor o Comando Militar do Planalto, uma das forças acusadas de omissão na invasão de bolsonaristas de 8 de janeiro; a inação da polícia militar perante os golpistas acampados em frente ao quartel do exército em Brasília; e, sobretudo, a recusa em demitir o tenente-coronel Mauro Cid do comando de um batalhão dos comandos em Goiânia.
Cid, que na qualidade de ajudante de ordens do Planalto, era quem carregava a mala de Bolsonaro e tinha acesso ao telemóvel do ex-presidente, está sob investigação do Supremo Tribunal Federal depois da polícia federal ter encontrado transações financeiras suspeitas no gabinete presidencial. O material indica que as movimentações se destinavam a pagar contas pessoais de Bolsonaro e de pessoas próximas da então primeira-dama, Michelle, atividade batizada nas redes sociais de "rachadinha palaciana", numa alusão ao esquema de corrupção de desvio de salários de assessores da família ao longo de décadas.
Com a troca de Arruda por Tomás Paiva, o novo comandante do exército que fez discurso a favor da alternância democrática, do resultado nas urnas eletrónicas e contra a intromissão das forças armadas na política antes de assumir a vaga, Lula pretende ver não só Cid demitido, como também Dutra de Menezes, o chefe do Comando Militar do Planalto, tido como leniente com os atos golpistas de dia 8, e o tenente-coronel Paulo da Hora, chefe do Batalhão da Guarda Presidencial que foi filmado a discutir com polícias militares enquanto vândalos destruíam o Planalto.
Essas demissões iminentes aumentarão para 66 o número de cabeças militares a rolar desde os ataques à democracia do dia 8 - as 63 demissões anteriores centraram-se sobretudo em militares destacados para trabalhar na administração das residências oficiais, principalmente o Palácio da Alvorada, onde mora o presidente.
"Agora, por exemplo, eu não tenho ajudante de ordens. Os meus ajudantes de ordens são os meus companheiros que trabalharam comigo antes. Por que eu não tenho? Eu pego o jornal está o motorista do Augusto Heleno [ex-ministro de Bolsonaro] dizendo que vai me matar e que eu não vou subir a rampa. O outro diz que vai me dar um tiro na cabeça e que eu não vou subir a rampa. Como é que eu vou ter uma pessoa na porta da minha sala que pode me dar um tiro? Então eu coloquei como meus ajudantes de ordem os companheiros que trabalham comigo desde 2010, todos militares".
Segundo o jornal O Globo, entretanto, há mais focos de tensão a caminho: a promoção de generais para o Alto Comando do Exército, em fevereiro, o que gera apreensão no Palácio do Planalto pela possibilidade de ascensão de oficiais ligados ao bolsonarismo, e o 31 de março, data do golpe de Estado de 1964 que impôs a ditadura militar no país, celebrada nos quartéis durante a gestão de Bolsonaro.
Quem está a salvo, pelo menos por enquanto, de demissão é o ministro da Defesa, José Múcio. Criticado pelo PT por demonstrar demasiada permissividade no diálogo com os militares e com os vândalos que ameaçaram golpe de Estado no dia 8, o político foi, no entanto, defendido por Lula. "Quem coloca ministro e tira ministro é o presidente da República. O José Múcio fui eu quem trouxe para cá. Ele vai continuar sendo meu ministro, porque eu confio nele. Tenho o mais profundo respeito por ele. Se eu tiver que tirar ministro a cada hora que ele comete um erro vai ser a maior rotatividade de mão de obra da história do Brasil".
Com discurso mais duro desde dia 8, Múcio garantiu à imprensa que o presidente "não perdoará" movimentos golpistas e que as investigações em torno das centenas de envolvidos nos ataques "vão até ao fim".
Na oposição, o general Hamilton Mourão, ex-vice-presidente de Bolsonaro e recém-eleito senador, criticou as atitudes do governo face ao exército. Acusou Lula de "alimentar crise" e classificou de "péssima para o país" a demissão de Arruda do comando do exército.
Estudioso, desde os anos 1980, das Forças Armadas, o cientista social Martins Filho disse à edição brasileira da BBC que Lula deve "tomar cuidado extraordinário, sem baixar a cabeça". "Não podemos cair na armadilha de achar que o general Paiva, sucessor de Arruda, é um dissidente do alto comando do Exército, que é simpático ao governo, que é um democrata, eu sugeriria esperar um tempo para ver, mas acho difícil que ele seja qualquer uma dessas três coisas".
Na imprensa, as posições de Lula vêm merecendo mais elogios do que críticas. A jornalista Cristina Serra escreveu na edição de terça-feira, 24 de janeiro, do jornal Folha de S. Paulo que "Lula tem feito apelos à pacificação do país e é um conciliador. Mas esse perfil não pode ser confundido com falta de autoridade. Foi o que o presidente deixou claro ao assumir seu papel de comandante supremo das forças armadas e determinar a exoneração do general Júlio César Arruda da chefia do Exército".
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