Democracia americana "por um triz": testemunhas revelam pressão para subverter eleição

Testemunhos nas audiências públicas da comissão que investiga o assalto ao Capitólio retratam um esforço coordenado da ala Trump para subverter resultados eleitorais na antecâmara do 6 de janeiro.
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O sistema aguentou-se, mas por um triz", disse o congressista democrata Adam Schiff, membro da comissão parlamentar que investiga o assalto ao Capitólio. "E a questão mantém-se: irá aguentar-se novamente?" Schiff falava no final da quarta audiência televisionada da comissão, reiterando uma das conclusões basilares da investigação: que a democracia americana esteve muito perto de ser subvertida por um esquema ilegal liderado por Donald Trump para se manter no poder.

As enormes implicações desta "tentativa de golpe" para a sobrevivência da democracia americana vão estar em destaque na audiência de hoje, que começa às 15h00 locais em Washington, D.C. (mais cinco em Lisboa). Serão apresentados testemunhos sobre a tentativa de Donald Trump de "corromper" o órgão de topo de aplicação da lei, o Departamento de Justiça, "para suportar a sua tentativa de subverter a eleição", segundo indicou o chairman da comissão Bennie G. Thompson. "Vamos ouvir que Donald Trump foi a força por detrás da tentativa de corromper o Departamento de Justiça", afirmou. O ponto alto da audiência de hoje será o testemunho presencial sob juramento de Richard Donoghue, que era o procurador-geral adjunto em exercício a 6 de janeiro de 2021.

No período crítico após a eleição presidencial, o ex-procurador-geral assistente Jeffrey Clark alegadamente pressionou oficiais do Departamento de Justiça para que investigassem teorias sobre fraude eleitoral. Terá mesmo pedido ao departamento que desse instruções a alguns estados para revogarem a certificação dos resultados eleitorais.

Quando Donald Trump considerou promover Jeffrey Clark a procurador-geral no lugar de Jeff Rosen, que afirmara não haver fraude nas eleições, Richard Donoghue disse-lhe que se demitiria imediatamente se isso acontecesse. É sobre essa tentativa de usar o Departamento de Justiça para mudar o resultado da eleição que o republicano irá testemunhar. A quinta audiência será liderada por um dos dois únicos republicanos da comissão, Adam Kinzinger.

O fio condutor destas audiências é a responsabilidade pessoal de Donald Trump, tanto nas tentativas de subverter os votos do colégio eleitoral como na instigação da violência que acabaria por cair sobre o Capitólio. Esse ataque, no dia em que os votos do colégio eleitoral haveriam de confirmar Joe Biden como vencedor, foi enquadrado num plano coordenado por Trump e seus aliados para impedirem a transição do poder.

O início das audiências públicas foi marcado para 9 de junho em horário nobre, sendo o culminar de quase um ano de trabalho e perto de mil entrevistas. A comissão é liderada por sete democratas - Bennie Thompson, Zoe Lofgren, Adam Schiff, Jamie Raskin, Pete Aguilar, Stephanie Murphy e Elaine Luria - e dois republicanos, Liz Cheney e Adam Kinzinger.

Na primeira audiência, foram mostradas imagens inéditas do assalto ao Capitólio, bem como uma cronologia dos eventos. Ficou patente que o grupo de extrema-direita Proud Boys liderou a invasão, deitando abaixo as primeiras barreiras de segurança, e membros desta organização - vários dos quais estão agora nas mãos da justiça - disseram em vídeo que foram ao Capitólio porque Donald Trump lhes pediu. Stewart Rhodes, líder do grupo extremista Oath Keepers, disse aos seguidores: "Não vamos sair disto sem uma guerra civil."

Uma das testemunhas presenciais foi Nick Quested, cineasta britânico que estava a fazer um documentário com os Proud Boys e documentou a preparação do assalto e a sua brutalidade.

Também sob juramento testemunhou Caroline Edwards, da polícia do Capitólio, que tentou defender o perímetro e foi a primeira agente a ser ferida pelos atacantes. Edwards descreveu "um cenário de guerra", uma "carnificina" com polícias caídos à sua volta e o chão escorregadio de sangue.

"Donald Trump esteve no centro desta conspiração", afirmou Bennie Thompson. "Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos, incentivou uma multidão de inimigos domésticos da Constituição a marchar pelo Capitólio e subverter a democracia americana."

Mas foi a profundamente conservadora Liz Cheney, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney, que proferiu as afirmações mais marcantes da audiência inicial, e que tiveram grande repercussão mediática. "No nosso país, não fazemos um juramento a um indivíduo ou partido político. Juramos defender a Constituição dos EUA. E um juramento tem de significar alguma coisa", afirmou. "Digo isto aos meus colegas republicanos que estão a defender o indefensável: o dia virá em que Donald Trump terá desaparecido, mas a vossa desonra permanecerá."

Cheney descreveu um "sofisticado plano em sete partes" concebido por Trump e pelos seus aliados para subverter a eleição, que durou meses e culminou na violência no Capitólio. "Quando um presidente não toma os passos necessários para preservar a União ou, pior, causa uma crise constitucional, estamos num momento de perigo máximo para a nossa república."

Na segunda audiência, que aconteceu a 13 de junho, a comissão focou-se em demonstrar que Donald Trump sabia que as alegações de fraude eram falsas e ele tinha mesmo perdido a eleição. Ou seja, sabia que não havia fundamento para a "grande mentira", mas escolheu continuar a promovê-la e usou-a para arrecadar fundos "de defesa eleitoral" que viria a usar para despesas pessoais.

Foi nesta audiência que se viu o testemunho gravado do então procurador-geral Bill Barr, explicando que disse várias vezes a Trump que as alegações de fraude eram disparatadas e que o presidente parecia "alheado da realidade." A filha do ex-presidente, Ivanka Trump, já tinha dito em vídeo que acreditou em Bill Barr, uma declaração que foi vista como surpreendente.

Eric Herschman, ex-advogado da Casa Branca, testemunhou que nunca viu qualquer evidência de que as máquinas de contagem de votos tinham deturpado os resultados. Ben Ginsberg, advogado de eleições do partido, afirmou que os republicanos colocaram diversos processos em tribunal e em nenhum caso (mais de 60) qualquer juiz determinou que havia fraude. Chris Stirewalt, ex-executivo da Fox News, explicou como o canal foi o primeiro a noticiar que o estado do Arizona tinha sido ganho por Biden, algo que o levaria a ser despedido.

Bill Stepien, ex gestor da campanha de Trump, afirmou (em vídeo) que ele fazia parte da "equipa dos normais", enquanto pessoas como Rudy Giuliani e Sidney Powell eram a "equipa dos loucos." Jason Miller, ex-conselheiro de Trump, disse que Giuliani estava bêbedo na noite eleitoral e a tentar convencer Trump a declarar vitória.

Na terceira audiência, a 16 de junho, o congressista Pete Aguilar revelou que o vice-presidente Mike Pence correu mesmo risco de vida. Um informante confidencial dos Proud Boys declarou a um tribunal que o grupo teria assassinado Mike Pence se tivesse conseguido localizá-lo no assalto ao Capitólio. E o republicano e ex-juiz Michael Luttig disse no seu testemunho que Donald Trump está a trabalhar neste preciso momento para subverter a eleição de 2024 a qualquer custo.

Já a quarta audiência deu voz aos oficiais republicanos que resistiram às pressões para cometerem crimes, incluindo o secretário de estado republicano da Geórgia, Brad Raffensperger, e Rusty Bowers, o republicano conservador que lidera a Câmara dos Representantes estadual do Arizona. Falou também uma ex-funcionária eleitoral da Geórgia, Wandrea ArShaye Moss, cuja vida foi destruída e a segurança permanentemente ameaçada depois de Trump e Giuliani a terem acusado - a si e à sua mãe - de fraude eleitoral.

Numa audiência centrada no plano de enviar um grupo de eleitores fraudulentos para mudarem de Biden para Trump os votos do Colégio Eleitoral, Rusty Bowers explicou que "em muitas ocasiões" pediu a Giuliani provas de que a eleição fora fraudulenta. "Temos muitas teorias. Só não temos provas", terá respondido Giuliani, segundo Bowers, que afirmou ter recebido 20.000 e-mails e dezenas de milhares de mensagens de voz que "sobrecarregaram" o seu gabinete enquanto a campanha de Trump aumentava a pressão.

Já Raffensperger contou como foi assolado por mensagens cruéis e disse que a sua mulher começou a receber ameaças de "cunho sexual" depois de Trump denunciar o casal aos seus apoiantes.

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