“O flagelo do nosso país”, lê-se junto de manequins com as imagens dos líderes do governo na manifestação em Berlim. EPA/CLEMENS BILAN
“O flagelo do nosso país”, lê-se junto de manequins com as imagens dos líderes do governo na manifestação em Berlim. EPA/CLEMENS BILAN

Crise no governo alemão acentuada pelo protesto de agricultores

Executivo liderado por Olaf Scholz recuou em parte no fim dos subsídios aos combustíveis, mas o setor agrícola, com o apoio da extrema-direita, não aceita a medida de austeridade.
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Há 500 anos, os camponeses do sul e do oeste da Alemanha revoltaram-se contra a nobreza e reivindicaram o direito às terras e a mais liberdade. As suas pretensões esbarraram nos exércitos ao serviço de Carlos V e acabaram esmagados, mas foram uma inspiração para posteriores lutas, como escreveu Friedrich Engels, o coautor do Manifesto Comunista com Karl Marx . Cinco séculos depois, as reivindicações dos agricultores alemães são mais um engulho ao governo de coligação social-democrata-verde-liberal, só que o descontentamento está a ser amplificado pela extrema-direita em vez dos comunistas. 

Na segunda-feira, milhares de agricultores voltaram às ruas de Berlim com os seus mais de 5 mil tratores em protesto contra o fim anunciado de subsídios ao combustível e de benefícios fiscais na compra de veículos. “Quanto mais cedo o governo alemão encontrar uma solução para anular os seus planos de aumento de impostos, mais cedo os agricultores sairão das ruas”, disse o presidente da Federação Alemã de Agricultores, Joachim Rukwied.

A estes juntaram-se profissionais de outros setores, como conta o Le Monde: “Não tenho nada a ver com os agricultores, mas identifico-me totalmente com a sua luta. Tal como eles, penso que temos um governo que não compreende o que as pessoas estão a passar neste país, que toma decisões arbitrárias e que trai os próprios fundamentos da democracia”, disse ao vespertino francês o empresário Ralf Lorenz, presente na manifestação na capital alemã. 

Quem também esteve presente foi o ministro das Finanças, o liberal Christian Lindner. Vaiado durante largos minutos, Lindner tentou mostrar proximidade com os manifestantes, ao dizer que passou a infância “perto de pradarias, campos e florestas” e que limpou estábulos. No entanto anunciou que não pode prometer mais ajudas governamentais e recebeu mais apupos ao alegar que o dinheiro era necessário devido à guerra na Ucrânia. “A paz e a liberdade na Europa estão novamente ameaçadas, por isso temos de voltar a investir na nossa segurança como costumávamos fazer”, justificou.

Numa segunda fase, o executivo anunciou que os subsídios ao combustível serão gradualmente abolidos até 2026, estando prevista uma redução de 40% neste ano, e os benefícios fiscais para os veículos agrícolas mantêm-se, mas a Federação Alemã dos Agricultores exige que os subsídios se mantenham na íntegra.

O que está em causa?
Até agora, os agricultores recebiam um reembolso de 21 cêntimos por litro de combustível e benefícios fiscais na aquisição de equipamento agrícola. No entanto, o governo liderado pelo social-democrata Olaf Scholz viu-se obrigado a encontrar alternativas para financiar o fundo para as alterações climáticas na sequência de uma decisão do Tribunal Constitucional, em novembro, segundo a qual o executivo federal não pode canalizar 60 mil milhões de euros não usados de fundos relacionados com a pandemia para o referido fundo ambiental. Este iria financiar projetos contemplados no orçamento do Estado, como o controverso plano para subsidiar a energia do setor industrial. 

Como as regras orçamentais impõem um défice máximo de 0,35% do PIB, e com um buraco de 17 mil milhões criado pela decisão do tribunal sito em Karlsruhe, o governo decidiu cortar nos subsídios para os agricultores, os quais, segundo a Agência Ambiental Federal, totalizam 65 mil milhões de euros, na esmagadora maioria relacionados com a devolução do dinheiro em combustível. Esta agência tem alertado para a necessidade de acabar com os subsídios aos combustíveis fósseis.

Segundo o Ministério da Agricultura alemão, citado pelo site Clean Energy Wire, cada empresa agrícola recebe 2900 euros em média por ano através do reembolso de combustível e benefícios fiscais relacionados com os veículos e maquinaria agrícola de 5000 euros anuais.

A rejeição dos cortes anunciados pelo governo não se ficou pelas ações convencionais. O vice-chanceler e ministro da Economia Robert Habeck foi impedido de desembarcar de um ferry por uma multidão, que tentou entrar no barco. A federação dos agricultores não se associou ao incidente, ao contrário da extrema-direita. A colíder da Alternativa para a Alemanha (AfD), Alice Weidel, preferiu responsabilizar Habeck e dizer que “fugiu”.

Refira-se que no programa do partido a AfD defende o fim dos subsídios aos agricultores.

A MNE Annalena Baerbock, o ministro da Economia Robert Habeck e o chanceler Olaf Scholz durante a reunião semanal do governo. EPA/CLEMENS BILAN

Com os protestos a ficarem mais musculados, os meios de comunicação alemães começaram a comparar o descontentamento com a revolta de 2018 em França liderada pelos “coletes amarelos” - igualmente originada pelo preço dos combustíveis (no caso, o governo iria aumentar a carga fiscal para financiar a transição ecológica). No entanto, o investigador Marius Bickhardt tem dúvidas de que a revolta obtenha a adesão popular registada no país vizinho. “Ao contrário do que se verificou em França, na Alemanha não se assiste hoje a reivindicações transversais que levem a um questionamento geral do modelo social”, disse o autor de um estudo sobre as mobilizações dos agricultores alemães ao Le Monde.

A AfD, o partido que nasceu em 2013 contra o euro e pelo regresso do marco, está hoje nos píncaros da popularidade. Lidera as sondagens em três estados do leste do país, Saxónia, Turíngia e Brandemburgo, quando se aproximam as eleições regionais, marcadas para setembro. Em termos nacionais, a mesma empresa de estudos de mercado, Forsa, que auscultou a maioria de intenções de voto na extrema-direita nas três regiões orientais, diz que a AfD é agora, e de longe, a segunda força no país, com 22% (nas eleições de 2021 obtiveram 10%).

A sondagem para a RTL, elaborada com recurso a 2500 eleitores, demonstra em paralelo o crescimento virtual dos democratas-cristãos (de 24% das eleições para 31% agora) e sobretudo o colapso dos três partidos da coligação semáforo - menos 21 pontos percentuais do que nas legislativas, em resultado de uma economia em contração e guerras internas.

Enquanto Scholz acusou a extrema-direita de “destruir a coesão” do país, o presidente Frank-Walter Steinmeier, em declarações ao Süddeutsche Zeitung, considerou que a credibilidade de um governo diminui porque “as decisões não são adequadamente comunicadas ou aceites, ou são sobrepostas por disputas internas que são divulgadas ao público”.

cesar.avo@dn.pt

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