Como Charles Darwin encontrou inspiração nas ilhas de Cabo Verde
Carmen Abd Ali/The New York Times

Como Charles Darwin encontrou inspiração nas ilhas de Cabo Verde

A maioria dos viajantes que vão em busca de Darwin dirigem-se às Galápagos, mas quando este lá chegou, em 1835, já passara quatro anos a bordo do Beagle. A 16 de janeiro de 1832 foi um Darwin ingénuo e pouco experimentado que chegou a Santiago, onde teve a primeira demonstração do seu talento.
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Charles Darwin tinha 22 anos quando descascou uma banana pela primeira vez. “Enjoativa e doce com pouco sabor”, anotou no seu diário de Santiago, a principal ilha do arquipélago de Cabo Verde, ao largo da costa da África Ocidental. Preferia laranjas e tamarindos, deliciando-se sempre que podia com frutos tropicais após três terríveis semanas no mar.

Darwin estava tão mareado no início da sua viagem de cinco anos a bordo do HMS Beagle que o capitão contava que este abandonasse o navio para regressar a Inglaterra assim que chegassem a terra. Porém, acabou por encontrar a sua vocação na ilha a que chamou Santiago, onde passou as suas primeiras horas a passear pelos coqueiros e a “escutar as melodias de pássaros desconhecidos e a observar novos insetos a esvoaçar sobre flores ainda mais novas”.

A maioria dos viajantes que vão em busca de Darwin dirigem-se às Ilhas Galápagos, onde se desenvolveu toda uma indústria turística em torno do seu legado. Foi nas Galápagos que Darwin, segundo a lenda popular, “descobriu” a seleção natural, embora, na realidade, só mais tarde, em Londres, tenha compreendido o significado dos tentilhões e de outros animais que aí recolheu. No entanto, quando Darwin chegou às Galápagos em 1835, já era um naturalista experiente que tinha passado quase quatro anos no Beagle.

O Darwin que chegou a Santiago a 16 de janeiro de 1832 era ingénuo e pouco experimentado, trazendo apenas solo europeu na bagagem. Cabo Verde, então uma colónia portuguesa, proporcionou a Darwin a primeira demonstração do seu próprio talento científico. “Teve um vislumbre dos seus próprios poderes e reconheceu um novo tipo de desejo: o desejo de contribuir para o mundo da história natural filosófica”, escreveu Janet Browne, sua biógrafa.

A inspiração de uma ilha

Atualmente, Cabo Verde é uma nação independente com 10 ilhas e cerca de 600 000 cidadãos que falam crioulo e português. Os turistas europeus dirigem-se normalmente ao Sal e à Boa Vista, onde os resorts dividem as praias de areia branca; os visitantes aventureiros escalam o vulcão ativo do Fogo ou festejam o Carnaval em São Vicente.

No entanto, vivem mais cabo-verdianos em Santiago do que em qualquer outra ilha. A arquitetura, a música e a cozinha misturam influências da África Ocidental e de Portugal. Na capital, Praia, é possível saborear uma papaia no mercado ou um pastel de nata numa pastelaria.

Santiago chamou-me especialmente à atenção desde que li a história da vida de Darwin. Queria ver a ilha que o inspirou a tornar-se o cientista que hoje celebramos. Assim, em março, alojei-me no Boutique Hotel Praia Maria, um hotel simples na Rua 5 de julho, uma avenida pedonal no Plateau, o centro histórico de Praia.

Carmen Abd Ali/The New York Times

Em frente ao hotel, um enorme mastim passeava sobre um telhado de telhas vermelhas, ladrando aos transeuntes: mulheres que vendiam morangos e cartões SIM, homens engravatados que se dirigiam aos ministérios, passageiros de cruzeiros alemães amontoados à volta de guias turísticos.

Ansioso por ver onde o Beagle atracou, desci a avenida, passando pelos cafés que servem cachupa, um guisado de milho, feijão e tubérculos, e pelas casas quadradas de sobrado com portadas pintadas e portas abertas que revelam prateleiras de mercearias e recordações. A estrada atravessava a praça principal, dominada por uma igreja colonial, até um passeio no topo de um penhasco com uma estátua do explorador português Diogo Gomes a vigiar o porto.

Um moderno porto funciona atualmente na margem oriental do cais. A base do Beagle era um ilhéu no centro, que Darwin chamou de Ilha das Codornizes e que hoje é conhecida como Ilhéu Santa Maria. Na praia do porto, alguns pescadores aceitaram levar-me de barco até ao ilhéu. Enquanto estes abriam pequenas amêijoas com pedras e as comiam cruas, contemplava as águas das marés e os seus tapetes de coral rosa e verde. Foi em águas como estas que Darwin encontrou polvos que mudavam de cor e pareciam brilhar à noite. Escreveu a um mentor em Inglaterra a descrever a sua primeira grande descoberta, acabando por constatar mais tarde que os poderes de camuflagem dos polvos eram já bastante conhecidos.

Um geólogo em ascensão?

Apesar de todas as referências de Darwin aos frutos tropicais de Santiago, a ilha é, em grande parte, seca, castanha e inóspita, à exceção de alguns vales irrigados. “A natureza é aqui estéril, nada quebra a quietude absoluta, nada é visto a mover-se”, escreveu Darwin. Os animais mais comuns, observou, eram um pardal endémico e um guarda-rios com cabeça cinzenta e cauda de penas azuis brilhantes: “a única ave de cores brilhantes que vi”. Observei as mesmas aves em quase todos os sítios que visitei em Santiago, bem como garças-boieiras, pintadas, corvos de pescoço castanho e rolas-turcas.

Os animais de Santiago não despertaram o interesse de Darwin pela origem das espécies. Tinha mais curiosidade em relação às rochas. “A geologia é atualmente o meu principal objetivo e esta ilha oferece todas as condições para a sua prática“, escreveu no seu diário.
Nesse sentido, contratei um geólogo local chamado Jair Rodrigues como meu guia. “Conheço todas as estradas de Cabo Verde”, garantiu-me Rodrigues. Foi buscar-me ao hotel numa carrinha vermelha e percorremos a orla do porto, numa estrada chamada Avenida Charles Darwin, uma das poucas homenagens da ilha à sua visita.

“Os cabo-verdianos não conhecem Darwin”, disse Rodrigues, que trazia consigo um livro de António Correia e Silva, um historiador da ilha que traçou uma espécie de “trilho de Darwin” à volta de Praia.

No entanto, a nossa primeira paragem não estava no mapa: um loteamento inacabado na ponta sudeste de Santiago. O bairro deserto terminava num penhasco com uma ciclovia por baixo de uma série de postes de iluminação, que poderiam ter sido extraídos de Amesterdão. Caminhámos através do matagal e descemos um trilho estreito na encosta da falésia, os nossos passos soltavam gravilha para o Atlântico que se agitava.

“Ao entrar no porto, pode ver-se uma faixa branca perfeitamente horizontal na face do penhasco marítimo, que se estende por algumas milhas ao longo da costa”, contou Darwin em A Viagem do Beagle. Os seus professores acreditavam que as caraterísticas da Terra tinham sido formadas por cataclismos violentos, mas no Beagle Darwin tinha estado a ler “Princípios de Geologia” de Charles Lyell, um escocês que defendia que a Terra tinha sido moldada por processos graduais que se desenvolveram constantemente durante longos períodos.

O trabalho de Lyell ensinou Darwin a encarar a natureza como a acumulação de pequenas mudanças incrementais, uma perspetiva que iria informar o seu pensamento mais tarde, quando estudou as plantas e os animais que tinha recolhido nas suas viagens. Ao desenvolver a sua teoria sobre a origem das espécies, Darwin disse que estava apenas a “seguir o exemplo de Lyell na Geologia”.

Especular sobre a origem das rochas de Santiago era “como o prazer de apostar”, disse a um amigo. A faixa branca de calcário em que reparou estava intercalada entre duas camadas mais espessas de basalto negro e tornou-se especialmente visível na falésia que Rodrigues me mostrou. Darwin argumentou que a camada inferior deve ter fluído para o mar a partir da ilha após uma erupção vulcânica. O calcário acumulou-se no topo à medida que pequenas criaturas aquáticas morriam e caíam no fundo do mar. Outra erupção selou o calcário sob uma segunda camada de basalto, antes de toda a estrutura se erguer do mar. Darwin escreveu mais tarde que a análise destes factos “convenceu-me da infinita superioridade dos pontos de vista de Lyell”.

Um enorme baobá e uma “canção selvagem”

Rodrigues levou-me ao longo da costa sul de Santiago até à Cidade Velha, a primeira cidade europeia nos trópicos e Património Mundial da UNESCO. Sentámo-nos no terraço de um restaurante à beira-mar e observámos os pescadores de lança a pescarem atum-albacora, que comemos grelhado.

Na cidade, as crianças das escolas aglomeravam-se na praça principal à volta de um obelisco em memória do comércio de escravos. Os portugueses chegaram a Santiago no século XV e utilizaram a ilha como ponto de passagem entre a África Ocidental e o Brasil. Darwin menciona a escravatura apenas por breves instantes nos seus diários de Santiago - suspeitou que uma “escuna muito bonita” no porto fosse “um traficante de escravos disfarçado” - mas sentiu repulsa pela crueldade que logo testemunhou na América do Sul.

A estrada principal da Cidade Velha conduzia a uma subida até às ruínas da igreja mais antiga a sul do Saara, onde lápides centenárias ainda são legíveis nos escombros. Os piratas saquearam a Cidade Velha várias vezes e, em 1770, os portugueses transferiram a capital para Praia, que era mais fácil de defender. As casas de pedra tradicionais ladeiam uma antiga rua lateral chamada Rua Banana, algumas das casas abraçavam o passeio tão de perto que quase se podia bater nas suas portas de madeira a partir do centro da rua.

Continuámos até uma aldeia do interior chamada São Domingos. No caminho, Rodrigues virou num vale estreito e estacionou debaixo de um enorme baobá, numa estrada de terra batida entre dois campos de cana-de-açúcar. Os baobás só têm folhas durante alguns meses do ano e a árvore estava despida, exceto por alguns frutos castanhos e felpudos que pendiam dos seus ramos. (O seu sumo, chamado calabaceira, é espesso, aveludado e ligeiramente azedo e foi a minha parte favorita do pequeno-almoço em Praia).

Os visitantes tinham gravado os seus nomes na casca cinzenta do tronco volumoso do baobá, um capricho que, aparentemente, remonta a séculos. Quando passou por aqui, Darwin disse que a árvore estava “completamente coberta de iniciais e datas como qualquer outra em Kensington Gardens”. Mediu a árvore - 4 metros de diâmetro e não mais de 9 metros de altura - e sentiu que os números demonstravam que “uma delineação fiel da Natureza não dá uma ideia exata da mesma”.

Nos seus diários, Darwin escreveu que se perdeu ao tentar caminhar até São Domingos na terra estéril e sem contornos. Quando finalmente encontrou a aldeia, ficou encantado com o coco, a goiaba, a cana-de-açúcar e o café que cresciam nos campos. “Não consigo imaginar nenhum contraste mais impressionante do que o da sua vegetação brilhante contra os precipícios negros que a rodeiam”, escreveu. Depois de “um jantar bastante substancial de carne cozinhada com vários tipos de ervas e especiarias e tarte de laranja”, Darwin passou por 20 jovens mulheres vestidas com turbantes e xailes brilhantes. As mulheres começaram a dançar e “cantaram com grande energia uma canção selvagem, marcando o compasso com as mãos nas pernas”.

Mais tarde, Rodrigues levou-me a um restaurante e jardim chamado Eco Centro. A cozinha estava fechada, mas queríamos admirar a vista do pátio, que dá para os telhados de metal ondulado da aldeia e para as montanhas recortadas do outro lado do vale.

O proprietário, um homem mais velho chamado Filomeno Soares, apontou para um terreno vedado onde planeava cultivar algumas das espécies locais que Darwin recolheu na ilha. Estava também a preparar uma nova ementa com tarte de laranja e a organizar apresentações da dança que Darwin tinha observado, chamada batuque, pelas mulheres da aldeia.

Estava a desenvolver as atrações temáticas de Darwin com uma empresária de Praia chamada Marvela Rodrigues, que queria atrair visitantes a Santiago como alternativa a ilhas mais turísticas como o Sal e a Boa Vista. “Não temos resorts com tudo incluído em Santiago”, disse-me ela. “Focamo-nos na cultura e na história.”

Poucos meses depois da minha viagem, a empresa de Marvela Rodrigues, Sandymar, instalou placas de sinalização em muitos dos locais ao longo do “Caminho de Darwin” mapeados no livro de Silva. Talvez os cabo-verdianos tenham, por fim, novas oportunidades de aprender sobre o curioso inglês que visitou a sua capital há tantos anos.

Uma segunda visita

Após três semanas em Santiago, o capitão do Beagle já não se preocupava com a determinação de Darwin. “Uma criança com um brinquedo novo não poderia ter ficado mais encantada do que este ficou com Santiago”, escreveu. Darwin, escrevendo no seu diário, estava ansioso por seguir em frente: “Estou a ficar impaciente por ver vegetação tropical mais exuberante do que se pode ver aqui.”

Quando o Beagle regressou a Santiago, quase cinco anos depois, no final da sua viagem, Darwin dedicou apenas alguns parágrafos do seu diário à visita, incluindo uma menção ao “nosso velho amigo, a grande árvore Baobá”.

Anos mais tarde, porém, ao escrever a sua autobiografia já na velhice, a ilha brilhava na sua memória: “Como me lembro claramente do penhasco baixo de lava sob o qual repousei, com o sol a brilhar, algumas plantas estranhas do deserto a crescer por perto, e com corais vivos nas águas da maré a meus pés.”

c.2024 The New York Times Company

Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times

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