A dias do quinto aniversário da oficialização do Brexit, o Reino Unido e a União Europeia (UE) enfrentaram-se pela primeira vez em tribunal. Os 27 acusam os britânicos de violar o Acordo de Comércio e Cooperação que gere a relação pós-“divórcio” no que diz respeito aos direitos de pesca, depois de Londres ter proibido totalmente a captura de galeotas no Mar do Norte. A proibição foi uma vitória para os ambientalistas, que querem proteger uma das principais fontes de alimento dos papagaios-do-mar, mas um revés para os dinamarqueses que têm 96% da quota europeia para a pesca desta espécie. O caso pode parecer caricato, mas arrisca tornar-se num foco de tensão.A decisão é esperada em finais de abril (sem direito a recurso). O Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia pode decidir a favor dos britânicos e manter a proibição ou declarar que esta viola os acordos, abrindo a porta à retaliação europeia se não for levantada. Uma derrota britânica irá não só irritar os ambientalistas (até os europeus que querem que a lei comunitária que serve de base à proibição britânica seja aplicada dentro da UE), como os próprios defensores do Brexit. Estes irão certamente pressionar o governo trabalhista a não ceder, prejudicando os desejos do primeiro-ministro, Keir Starmer, de fazer um “reset ambicioso” às relações entre Londres e Bruxelas. Depois do referendo de 23 de junho de 2016, foram precisos quatro anos e três primeiros-ministros conservadores (a começar com David Cameron, que se demitiu por a votação não ter sido a que ele esperava, passando por Theresa May até chegar a Boris Johnson) para negociar o acordo de saída e “Get Brexit done” (literalmente fazer o Brexit acontecer). Este foi aliás o slogan que deu a vitória estrondosa a Johnson nas legislativas de 2019, permitindo-lhe finalmente oficializar o “divórcio” a 31 de janeiro de 2020.Nos cinco anos desde que o Brexit se tornou oficial, já houve mais dois líderes conservadores - Liz Truss, que esteve só 44 dias no n.º 10 de Downing Street, e Rishi Sunak. Em julho do ano passado, o Labour voltou ao poder, com Starmer a conquistar uma das maiores maiorias de sempre - tem 411 deputados, diante de apenas 121 dos conservadores. Fê-lo numa eleição onde o Brexit esteve quase ausente, mas com a promessa de “melhorar” o acordo, sendo que o manifesto do partido promete “não voltar ao mercado único, à união aduaneira ou à liberdade do movimento”. Mas, sete meses depois, ainda não é claro aquilo que o Reino Unido quer, e isso já estará a gerar impaciência em Bruxelas. O site Politico contou há semanas que uma reunião de uma delegação de eurodeputados que visitou o Reino Unido terminou com um deles a citar um dos êxitos das Spice Girls: “Tell us what you want, what you really, really want” (diga-nos o que quer, o que realmente quer). “A UE está aberta a uma relação mais próxima, nomeadamente em matéria de segurança”, segundo um relatório do UK in a Changing Europe (Reino Unido numa Europa em mudança), um think tank do King's College. “Mas não há vontade por parte da UE em reabrir as negociações sobre o Acordo de Comércio e Cooperação”, referem os especialistas. Para a semana, Starmer volta a sentar-se à mesa dos líderes europeus, tendo sido convidado pelo presidente do Conselho Europeu, António Costa, a participar num jantar durante um “retiro informal” sobre Defesa. Não será a sua primeira viagem a Bruxelas, estando ele e os membros do seu governo a acumular milhas na preparação da primeira cimeira UE-Reino Unido que poderá ocorrer ainda na primeira metade do ano (não sendo ainda certo em que moldes).Se um acordo de Defesa pode estar na calha, já que ambas as partes têm bem presente quais são as ameaças e têm ambas presença na NATO (23 dos 27 são membros), noutras áreas será mais difícil um entendimento. Fala-se em questões veterinárias, nos desafios para os artistas em digressão ou no reconhecimento mútuo das qualificações profissionais. Pontos que dificilmente terão um grande impacto a nível económico, onde os britânicos se calhar mais precisam - não que a situação económica esteja melhor na UE..Economia do Reino Unido abranda à conta do Brexit.A complicar qualquer discussão estará o facto de, apesar de o Brexit não ter sido prioridade nas eleições, cada vez que se fala no tema isso levantar ondas no Reino Unido. Apesar de só 30% dos inquiridos numa sondagem do YouGov acreditarem que o Reino Unido estava certo em querer sair - o valor mais baixo de sempre - e seis em dez dizerem que o Brexit até agora foi “mais um falhanço”. E há casos de “Bregret”, o nome pelo qual é conhecido o arrependimento de ter votado no Brexit, que é sentido por um em seis eleitores do Leave. No limite, 55% dos inquiridos é a favor de reverter o Brexit, com 39% a defenderem “fortemente” a reentrada na UE (contra 33% que se opõem a esta ideia). O impacto da políticaNo final, as questões políticas internas britânicas vão continuar a ter impacto na relação com os 27 e a ditar o que o governo pode fazer. “O Brexit prejudicou os dois principais partidos. O Labour perdeu os votos do Leave, o que lhe custou caro em 2019, quando perdeu lugares para os conservadores por causa disso. Os conservadores perderam os votos do Remain, o que lhes custou caro em 2024, particularmente para os liberais democratas”, disse ao DN o professor de Política da Queen Mary University de Londres Tim Bale, autor do livro “The Conservative Party after Brexit: Turmoil and Transformation” (O Partido Conservador após o Brexit: Turbulência e Transformação).“Mas o Brexit parece ter prejudicado mais os conservadores do que os trabalhistas a longo prazo. Não apenas porque prejudicou a economia a que presidiram até 2024, mas também porque o Leave venceu o referendo em 2016 com a promessa de reduzir a imigração, apenas para um governo conservador pós-Brexit presidir a um aumento massivo nos números dos que chegam desde então”, acrescentou, indicando que “a falha em cumprir essa promessa ajudou à ascensão do Reform UK”.Nigel Farage, tal como Boris Johnson, foi um dos rostos do referendo do Brexit. O então líder do UKIP proclamou que o dia 23 de junho ficaria conhecido como o dia da “independência” do Reino Unido. Farage viria a fundar, dois anos depois, o Partido do Brexit (rebatizado Reform UK em 2021), tendo sido o mais votado nas últimas europeias em que os britânicos participaram (2019). Nas legislativas do ano passado, o partido (e o próprio Farage, que até então só tinha sido eurodeputado) estreou-se na Câmara dos Comuns. Elegeu cinco deputados, apesar de ter sido o terceiro partido mais votado a nível nacional, com mais de quatro milhões de votos (no sistema britânico, a pessoa mais votada em cada um dos 650 círculos eleitorais é eleita a uma única volta). “A tentativa do Partido Conservador de acompanhar a agenda nacionalista e populista de Nigel Farage também ajudou à subida do Reform UK”, explicou Tim Bale, lembrando que esta foi “uma tentativa que só serviu para alienar ainda mais os eleitores socialmente liberais, ao mesmo tempo que não conseguiu impressionar os conservadores culturais que acabaram (para usar uma frase do recentemente falecido líder da extrema-direita francesa Jean-Marie Le Pen) preferido o original à cópia”, indicou. O relatório do think tank diz que “um desempenho forte do Reform UK nas eleições locais de maio (...) pode ter impacto na vontade de Starmer em procurar mudanças significativas na relação com a UE”. Ao mesmo tempo, lembra que a nova líder conservadora, Kemi Badenoch, vai voltar a usar o Brexit para atacar o Labour. Na última sessão de perguntas ao primeiro-ministro, no final do ano passado, a líder da oposição acusou Starmer de “planear abdicar das liberdades duramente conquistadas no Brexit”. Uma acusação que estará a planear repetir mais vezes. Um “rochedo” no sapato da relação.Cinco anos depois da saída do Reino Unido da União Europeia ainda há um “rochedo” no sapato da nova relação entre Londres e Bruxelas: Gibraltar. As negociações sobre o território britânico no sul de Espanha ainda não terminaram. “O Brexit é o presente que nos continua a lixar”, disse o chefe do governo de Gibraltar, Fabian Picardo, em declarações citadas pelo jornal The Independent. O território votou esmagadoramente contra o Brexit (96%), mas de nada valeu e a questão sobre a liberdade de movimento com Espanha (que o considera uma “colónia” britânica e não reconhece o seu estatuto) tornou-se ainda mais complicada. O Rochedo depende de cerca de 15 mil trabalhadores que vivem além-fronteiras e que precisam de poder entrar sem atrasos. O acordo que poderá regulamentar tudo, como o Quadro de Windsor que resolveu a situação em relação à outra única fronteira terrestre (entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte), ainda não foi assinado.Há quase um ano que se diz que este acordo está “quase”, mas Espanha estará focada no aeroporto de Gibraltar e a soberania do istmo onde está construído - alegando que não estava incluído no Tratado de Utrecht (que foi assinado em 1713 e que passou a soberania da cidade e do castelo de Gibraltar, além do porto e fortalezas para a coroa britânica) e que esse território que liga Gibraltar a Espanha está ocupado ilegalmente. Mas a eventual passagem do aeroporto para os espanhóis deixaria o Rochedo isolado. susana.f.salvador@dn.pt