China na encruzilhada da nova política externa norte-americana
Não colhe unanimidade a forma como as autoridades chinesas observam a nova dinâmica geopolítica, marcada pelos esforços de reatamento de relações entre os Estados Unidos e a Rússia. Se há quem, entre os analistas, destaque que a quebra de confiança na administração Trump deixa via aberta para Pequim consolidar as suas posições, outros acreditam que a nova política externa norte-americana deixa as autoridades chinesas preocupadas.
Era Hillary Clinton candidata à presidência, em 2016, quando fez um balanço sobre a política com a Ásia por si iniciada quando desempenhou o cargo de secretária de Estado entre 2009 e 2013. “Penso que já percorremos algum caminho na tentativa de reequilíbrio, mas temos um longo caminho a percorrer e há muito em jogo na forma como lidamos com todos os atores da Ásia”, disse. Clinton lançou as bases para o acordo de comércio livre Parceria TransPacífico, que deixou a China de fora, entre outras iniciativas. Foi a democrata quem tomou posição sobre as reivindicações de soberania sobre ilhas, recifes e baixios por parte de Pequim e também pelo Japão, Taiwan, Brunei, Malásia, Filipinas e Vietname, no Mar da China Oriental e no Mar da China Meridional. Além das ilhas existentes, a China ergueu outras, artificiais, e reivindica grande parte do mar entre todas elas, tendo em paralelo patrulhado as águas disputadas. Os EUA não reconhecem as pretensões chinesas e defendem a liberdade de navegação. No entanto, a componente militar -- que não era da alçada de Clinton -- não acompanhou os esforços diplomáticos e comerciais da rotação dos EUA para o Pacífico, segundo foi notado à época pelos críticos de Barack Obama. Perdida a eleição presidencial para Donald Trump, este impôs taxas aduaneiras aos produtos chineses, acusando o regime comunista de práticas comerciais injustas e de roubo de propriedade intelectual. O sucessor, Joe Biden, agravou as barreiras comerciais entre os dois países. O segundo mandato de Trump inicia com mais taxas sobre as importações de produtos chineses, de 20%, como retaliação pela entrada de fentanilo, opioide produzido na China. Mas, mais do que isso, a China é reconhecido como o grande adversário dos Estados Unidos.
Se isso estava entendido na ordem executiva assinada no primeiro dia sobre a política comercial, mais claro se tornou com a ordem executiva sobre política de investimento, com data de 21 de fevereiro. Nela, Trump diz que “investidores afiliados à RPC [China] estão a visar as jóias da coroa da tecnologia dos Estados Unidos, dos abastecimentos alimentares, das terras agrícolas, dos minerais, dos recursos naturais, dos portos e dos terminais de navegação”, e promete combater a situação. O documento, que designa a China de “adversário estrangeiro”, é o único país designado ao longo do texto, embora no final também liste o Irão, a Coreia do Norte, Cuba, “o regime venezuelano de Nicolás Maduro” e a Rússia.
As reuniões entre altos funcionários norte-americanos e russos, primeiro em Riade, depois em Istambul, na sequência de um telefonema entre Trump e Vladimir Putin, e a forma como o dossiê Ucrânia está a ser gerido dão a entender que, mais do que uma janela aberta, a Casa Branca prepara a implosão de um edifício. Alguns comparam esta aproximação à Rússia com a jogada do presidente Richard Nixon e do chefe da diplomacia Henry Kissinger, quando estes estabeleceram relações com Pequim, explorando as rivalidades dos regimes comunistas da URSS e da China. Chamaram “Nixon invertido” a esta aproximação a Moscovo. “Isso fará com que Xi Jinping questione o alinhamento estratégico que [passou] os últimos 12 anos a construir com a Rússia - ‘talvez não seja assim tão fiável, talvez não seja assim tão sólido’”. considerou à CNN Yun Sun, diretor do programa da China do think tank Stimson Center.
Dennis Wilder, que foi conselheiro de George W. Bush sobre a China, disse à Radio Free Europe que, “embora uma reaproximação total possa não estar nas previsões, eles [chineses] estão nervosos porque se Trump levantar as sanções contra a Rússia, a dependência de Moscovo em relação à China diminui”. A China (tal como a Índia) tem beneficiado de petróleo e gás russos a preço de saldo em resultado das sanções económicas, e tem vendido produtos com tecnologia de dupla utilização à Rússia. No dia do terceiro aniversário da invasão da Ucrânia pelas tropas russas, o líder chinês manteve uma conversa com o homólogo russo. “As relações entre a China e a Rússia têm uma forte dinâmica interna e um valor estratégico único, e não têm como objetivo nem são influenciadas por terceiros”, disse Xi durante o telefonema, segundo Pequim. O governo chinês já havia elogiado publicamente os sinais de aproximação entre Rússia e EUA para se alcançar a paz na Ucrânia.
Ao DN, Felipe Pathé Duarte afirma que “segundo o revisionismo de Trump, boas relações entre Washington e Moscovo podem reduzir o atrito global numa série de questões, resultando potencialmente num acordo para ajustar o funcionamento das instituições multilaterais e estabelecer novas normas para o século XXI, a fim de confrontar Pequim”. Prossegue o coordenador do War & Law Knowledge Centre da NOVA School of Law: “Ou seja, é possível uma campanha de pressão global contra a expansão chinesa, para reduzir a hipótese de conflito no Indo-Pacífico. Conta-se com o apoio de uma Rússia - mais próxima dos EUA e mais cautelosa com a crescente influência da China na Ásia Central -, dos aliados tradicionais dos EUA na Ásia Oriental - como a Austrália e o Japão - e uma Índia que é empurrada para mais perto do Ocidente.”
Além das declarações de Xi, Pequim não demorou a responder, aproveitando a “profunda inquietação dos aliados mais próximos” dos EUA na Ásia, segundo Michael Green, outro antigo conselheiro de W. Bush. “Altos funcionários do Japão, da Austrália, da Indonésia e da Tailândia disseram-me que a China está a aproximar-se, oferecendo-se para substituir os EUA como parceiro de eleição”, disse Green à NBC News. E não só: o enviado especial da China para os assuntos europeus, Lu Shaye, disse que a política “dominadora” de Trump em relação à Europa é “bastante chocante”. Numa intervenção em Pequim, Lu falou para a Europa: “Penso que os amigos europeus deveriam refletir sobre isto e comparar as políticas da administração Trump com as do governo chinês. Ao fazê-lo, verão que a abordagem diplomática da China enfatiza a paz, a amizade, a boa vontade e a cooperação em que todos ganham.” É este o caminho? “Alguns países europeus podem ver ganhos rápidos ao recorrer à alternativa chinesa para reduzir os riscos dos EUA”, diz Pathé Duarte. “Mas os problemas na relação China-UE não desapareceram. Por exemplo, a dependência da tecnologia chinesa pode prejudicar a competitividade da Europa e representa uma ameaça à segurança”, afirma, dando como exemplo o caso do 5G.
Sob crescente pressão, Taiwan acena com os semicondutores
A dependência dos EUA na tecnologia de ponta feita na ilha pode ser um garante de segurança.
Taipé vê a tendência de normalização das relações entre a Rússia e os Estados Unidos com particular atenção, uma vez que a capacidade dissuasora de Taiwan depende de Washington. O regime comunista mantém o objetivo da unificação com a ilha de facto independente, nem que seja pela força, e caso a Ucrânia seja deixada à sua sorte, as autoridades de um e do outro lado do estreito da Formosa retirarão as suas conclusões.
A pressão chinesa tem vindo a acentuar-se: um relatório publicado pelo Gabinete de Segurança Nacional de Taiwan no início do ano conclui que os ataques cibernéticos chineses duplicaram de 2023 para 2024, para 2,4 milhões por dia. As telecomunicações foram atacadas em especial (aumento de 650%). Também no início do ano, as autoridades da ilha apontaram o dedo a um cargueiro chinês por ter causado danos graves a um cabo submarino. E dias depois, a polícia prendeu o tenente-general na reserva Kao An-kuo e mais quatro pessoas, acusadas de serem células adormecidas para derrubarem o governo democrático.
Taiwan pode sentir que a ameaça se agrava, mas não é do interesse vital dos EUA deixarem a ilha cair: esta produz 90% dos semicondutores no mundo, pelo que “Taiwan precisa dos EUA, mas os EUA também precisam de Taiwan”, como disse Ryan Hass, ex-diretor para a China do Conselho de Segurança Nacional dos EUA. Trump já sinalizou que quer relocalizar parte daquela indústria para o seu país, mas esse é um processo demorado. Na segunda-feira, o administrador da maior empresa de semicondutores, TSMC, foi recebido na Casa Branca, onde anunciou a intenção de investir 100 mil milhões numa fábrica no Arizona.
Em 1979, os EUA reconheceram a República Popular da China e em contrapartida deixaram de manter relações oficiais com a República da China/Formosa/Taiwan, mas em paralelo o Congresso aprovou legislação para manter as relações com as entidades da ilha, o que incluía o fornecimento de armas para autodefesa. A administração Biden prestou continuada assistência militar à Ucrânia (à exceção de um período de seis meses devido a um bloqueio da maioria republicana na Câmara dos Representantes) mas também a Israel e a Taiwan. No último caso, as relações foram reforçadas em 2022 com legislação aprovada a permitir que receba armamento de forma direta a partir dos inventários de defesa dos EUA, além dos empréstimos e subvenções que já tinha.