Nicolás Maduro autoproclamou-se vencedor das controversas eleições de julho na Venezuela e a justiça local mandou prender o agora exilado candidato da oposição Edmundo González. No caminho, o presidente venezuelano mandou Lula da Silva tomar chá de camomila e lançou suspeitas sobre as eleições brasileiras de 2022 antes de desafiar, nos últimos dias, a diplomacia do país vizinho. E, no entanto, o presidente do Brasil não rompe com o homólogo da Venezuela. Porquê? Há um largo cardápio de razões mas a principal é geopolítica. .Primeiro, as tensões entre os vizinhos. Às vésperas da eleição, Lula revelou-se “preocupado” por Maduro dizer que, em caso de vitória da oposição, haveria “um banho de sangue”. Na sequência, o líder venezuelano mandou o homólogo tomar “um chá de camomila”..Já após a contestada vitória eleitoral, Lula condicionou o reconhecimento do resultado à apresentação das atas, o que levou Maduro a afirmar que, na Venezuela, “os votos são auditados 16 vezes, ao contrário das eleições brasileiras de 2022”, de cujo desfecho Jair Bolsonaro e os seus apoiantes lançaram dúvidas jamais comprovadas..E nos últimos dias, o presidente da Venezuela anunciou a decisão de retirar a autorização para o Brasil tutelar a embaixada da Argentina, função que a diplomacia brasileira exercia desde que, no início de agosto, Maduro decidiu expulsar as equipas diplomáticas de sete países, incluindo a de Buenos Aires, por causa das acusações de fraude nas eleições..Em paralelo, o pedido da justiça venezuelana para a prisão de Edmundo González Urrutia tornou ainda mais tóxica a imagem internacional do governo de Caracas..Perante tudo isto, porém, Lula não só não rompe relações como é contrário a um bloqueio contra o vizinho. “Nós não aceitamos o resultado das eleições mas não vou romper relações e não quero o bloqueio porque o bloqueio não prejudica Maduro mas sim o povo e eu acho que o povo não deve ser vítima disso”. Noutra ocasião, disse que o Brasil “quer estar com todos, quer estar com a Venezuela e quer estar com a Argentina”..A suposta passividade tem cinco razões secundárias e uma principal. Em primeiro lugar, a necessidade de gerir o diálogo com um país com o qual o Brasil compartilha 2200 quilómetros de fronteira. “Maduro pode empreender uma guerra patriótica contra a Guiana por causa da questão de Essequibo e as tropas venezuelanas teriam de passar pelo norte do Brasil, região onde as defesas brasileiras são muito fracas porque, inexplicavelmente, a maior parte das defesas do país estão ao sul, onde há muito menos ameaças, nomeadamente, do narcotráfico”, explica Vinícius Vieira, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado. .Depois, os interesses comerciais: a importação de energia da Venezuela pelo Brasil é relevante sobretudo para Roraima, estado brasileiro que depende dela..Em terceiro lugar, há vastas comunidades brasileiras e venezuelanas nos dois países. “O Brasil tornou-se nos últimos anos o quarto principal destino dos venezuelanos, há uma grande pressão na fronteira e da própria opinião pública sobre essa questão”, disse Carolina Silva Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo à BBC Brasil..“A crise dos refugiados é algo muito mais significativo do que a afinidade ideológica”, completou a especialista, levando-nos já para o quarto ponto. .“Sim, a aproximação ideológica é um fator que não deve ser negligenciado”, concorda Vieira. “Lula seria mais duro com Caracas se alas mais radicais do Partido dos Trabalhadores, ainda muito pautadas pelo anti-imperialismo americano, dessem sinais de inflexão no apoio a Maduro, à Rússia e à China, o que é, aliás, uma vergonha para um partido que liderou a vitória contra um autocrata como Jair Bolsonaro”. .Outro fator importante é a prática diplomática conciliatória brasileira. Segundo o académico, “a tradição do Brasil é de mediação e de respeito pelo princípio da não intervenção”..Mas o principal motivo é geopolítico: “Há uma visão na América Latina, que começou na América Central na década de 80 e foi evoluindo desde então, de construir uma cultura de negociação diplomática interna”, diz Vieira. “E o Brasil, desde antes mesmo da redemocratização, quer construir um espaço de autonomia na América do Sul e isso implica não permitir que potências como os EUA intervenham em assuntos regionais”..“Se o Brasil cancelasse qualquer canal de comunicação com a Venezuela, que já está isolada na região, os EUA buscariam resolver a questão no âmbito global com China e Rússia e isso é perigoso até do ponto de vista militar para o Brasil”, prossegue. “A questão da Venezuela requer, portanto, cuidados porque pode implicar trazer para o quintal do Brasil um conflito à escala global, sobretudo se Donald Trump vencer as eleições”..“Seria, entretanto, humilhante para o Brasil”, acrescenta, “se Putin instalasse aqui bases militares oficiais”. “Por isso é muito importante para o Planalto manter-se nos BRICS. Nesse fórum, por respeito à diplomacia brasileira, China e Rússia optam por não intervir na região”. Em suma, Lula não rompe com Maduro para não deixar gerar um vácuo de poder que seria preenchido pelas grandes potências.