Busca por desaparecidos na Amazónia cada vez mais confusa
O décimo dia de buscas por Bruno Araújo Pereira, indigenista brasileiro, e Dom Phillips, jornalista inglês, desaparecidos desde 5 de junho na região do Vale do Javari, na Amazónia, começou com mais dúvidas do que certezas, depois de três autoridades brasileiras darem versões conflitantes entre si nas últimas horas. Com isso, o desespero das famílias aumenta. E a pressão sobre o governo de Jair Bolsonaro também.
A Polícia Federal brasileira, entretanto, deteve um segundo suspeito. Os responsáveis pela operação cumpriram um mandado de captura temporário emitido contra Oseney da Costa de Oliveira, de 41 anos, conhecido como "Dos Santos", por suspeita de envolvimento no caso, juntamente com Amarildo da Costa Oliveira, vulgo 'Pelado', que se encontra detido há uma semana.
Na manhã de segunda-feira, dia 13, Roberto Doring, número dois da embaixada do Brasil no Reino Unido, sob a alçada do Ministério das Relações Exteriores, disse à família de Dom Phillips que os corpos de ambos foram descobertos. "Doring passou-nos essa atualização, recebida por ele, de um contacto oficial no Brasil, às 8h30 de dia 13, mas um dia depois ainda não tivemos nenhuma outra atualização e, para complicar a nossa desesperada situação, fomos informados que a polícia o contradisse, assim, resta-nos esperar que, com tempo, entendamos o que se passou e as duas versões se reconciliem", escreveram os familiares em comunicado, terça-feira, dia 14.
De facto, horas depois daquele contacto, a Polícia Federal, vinculada ao Ministério da Justiça, contradisse o Ministério das Relações Exteriores. "O comité de crise, coordenado pela Polícia Federal do Amazonas, informa que não procedem as informações que estão sendo divulgadas a respeito de terem sido encontrados os corpos do sr. Bruno Pereira e do sr. Dom Phillips".
Pelo meio, o presidente Jair Bolsonaro disse em entrevista à rádio CBN do Recife que as vísceras dos desaparecidos já estão em Brasília em análise. "Os indícios levam a crer que fizeram alguma maldade com eles. Foram encontradas vísceras humanas, que já estão aqui em Brasília para se fazer o ADN".
Os desencontros oficiais geraram críticas imediatas a Bolsonaro pela condução do processo. Mas também as políticas do governo de esvaziamento das instituições de proteção aos indígenas e de estímulo a garimpeiros, pescadores e caçadores ilegais na área têm sido censuradas. "As autoridades rodam como baratas tontas", escreveu Josias de Souza, no portal UOL. "O crime se organizou na Amazónia porque o estado se avacalhou. Num quadro em que os criminosos ambientais se misturam com traficantes de armas e drogas, está ameaçada a própria segurança nacional".
Guenter Loebens, do Conselho Indigenista Missionário, chama Bolsonaro de "corresponsável" pelo desaparecimento de Pereira e Phillips. "Trata-se de uma política mais ampla sinalizada por Bolsonaro que diz que "índio é coisa do passado, tem de ser gente", estimula todo o tipo de usurpação dos territórios indígenas e enfraquece os órgãos de fiscalização".
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, entretanto, investigadores sob anonimato apontam que a pesca e a caça ilegais na região são o pano de fundo para o desaparecimento. O pescador Amarildo Oliveira, chamado de Pelado, já foi preso. Testemunhas afirmam que o viram em perseguição da embarcação de Pereira e Phillips. Ele nega envolvimento.
Bruno Araújo Pereira, brasileiro de 41 anos, trabalhava como membro da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), depois de servir na Fundação Nacional do Índio (Funai). Dom Phillips, inglês de 57 radicado no Brasil desde 2007, colaborava com o The New York Times, Washington Post, Financial Times ou The Intercept, além do The Guardian.
Os dois estão desaparecidos desde dia 5, quando deixaram a comunidade de São Rafael, onde Bruno tinha marcada reunião com um líder local, conhecido como Churrasco, e se dirigiram, pelo rio Itaquaí, a Atalaia do Norte, a maior cidade da região. O percurso, que eles não completaram, duraria cerca de duas horas.
A região do Vale do Javari é conhecida por ter o maior número de indígenas em isolamento voluntário do mundo mas também, nos últimos anos, por ser uma rota de escoamento de cocaína do Peru para o Brasil. Em paralelo aos narcotraficantes, as terras vêm sendo invadidas por garimpeiros, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais, o que a torna muito violenta.
Em 2019, o indigenista Maxciel dos Santos foi morto a tiros em Tabatinga, cidade vizinha. A Funai relatou ainda mais oito episódios de violência na zona próxima à do desaparecimento de Pereira e Phillips. E integrantes da Univaja relataram ameaças de morte, em abril, na praça central de Atalaia do Norte, o destino dos dois. "Vai acontecer com vocês o mesmo que aconteceu com o Maxciel", terá dito um pescador ilegal a um elemento da Univaja.
Algumas das testemunhas ouvidas pela polícia falaram em ameaças também a Pereira e Phillips nos últimos dias. Pereira havia entregado à Polícia Federal e o Ministério Público Federal mapas do local de atuação e fotos dos membros de uma organização criminosa que atua na pesca e caça ilegais no Vale do Javari.
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