"Brasil tem uma diplomacia muito capaz. É, de longe, a melhor da América Latina"

Lula está a mostrar dificuldades em assimilar que o mundo já não é o mesmo da primeira passagem pelo poder e recentes declarações vistas como pró-russas complicam relação com Estados Unidos e União Europeia, diz historiador Carlos Malamud, investigador principal para a América Latina do Real Instituto Elcano. O que vale ao Brasil é a qualidade dos diplomatas.
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Para quem é argentino mas desempenha as funções de investigador do Real Instituto Elcano, baseado em Madrid, é óbvia a diferença entre viver a guerra da Ucrânia a partir da Europa e vê-la a partir da América Latina. Para a América Latina, é, pois, uma guerra distante?
Sim, claramente. Para a América Latina, a Ucrânia é um tema que está muito distante. Recordo-me que quando foi a Guerra das Malvinas em 1982, em Espanha houve muita pressão em relação ao tema de Gibraltar. A Argentina esperava ganhar a simpatia espanhola associando Gibraltar e Malvinas, pensando que a solidariedade contra a Grã-Bretanha poderia ser importante. E numa visita que fez ao campo de Gibraltar, o primeiro-ministro, Leopoldo Calvo-Sotelo, foi questionado sobre as Malvinas e o rochedo de Gibraltar. Olhando para o rochedo e separando-o das Malvinas, Calvo-Sotelo disse que "é um problema distinto e distante". Em relação à guerra da Ucrânia vista da América Latina, a ideia que predomina é precisamente essa, esse é problema distinto e distante, não nos afeta diretamente, não mexe connosco, enquanto, pelo contrário, na Europa se vive como um problema próprio, que afeta a vida quotidiana, o futuro e a própria sobrevivência do projeto europeu.

Mas há pressão dos Estados Unidos sobre os seus aliados na América Latina para nas Nações Unidas votarem contra a Rússia e isso tem resultado em grande parte.
É verdade que nas Nações Unidas, a maior parte dos países latino-americanos votou contra a Rússia e o mesmo aconteceu em outras instâncias multilaterais. Mas, primeiro, não há uma posição comum da América Latina sobre a guerra. Há sim até um núcleo de países, Cuba, Nicarágua, Venezuela e Bolívia, que apoia firmemente Putin. E há outros, como o México, que tem uma atitude bastante ambivalente, agora o Brasil também. Por um lado, apesar das fortes pressões dos Estados Unidos e também da Europa para que os seis países latino-americanos que possuem armamento de fabrico russo ou soviético o coloquem à disposição da Ucrânia, o vendam à Ucrânia, foi impossível. Nenhum desses países se comprometeu a ceder o seu material bélico à Ucrânia, inclusive o presidente de Colômbia, Gustavo Petro, revelou que preferia que essas armas se convertessem em sucata e ficassem como sucata na Colômbia do que serem enviadas para potenciar uma guerra com a qual ele não estava de acordo. Também com a única e honrosa exceção do Parlamento chileno, o presidente Volodymyr Zelensky não pôde dirigir a palavra a nenhum outro parlamento latino-americano, nem tão pouco o presidente ucraniano pôde falar em fóruns multilaterais latino-americanos.

Do ponto de vista económico, haverá sempre um impacto da guerra?
Do ponto de vista económico, também afeta a América Latina. Desde logo pela inflação, que aumentou em todo o mundo por causa da guerra. E a dificuldade de abastecer-se de fertilizantes também afetou os mercados agrícolas. E, nesse sentido, a América Latina é até, talvez, das regiões do mundo que mais está a sofrer pelo aumento dos preços dos produtos alimentares, o que tem uma séria repercussão sobre as classes populares. Há um lado mais positivo, que é o aumento do preço de algumas matérias-primas como consequência da guerra, o que tem beneficiado alguns países latino-americanos. Outros não têm sabido aproveitar a oportunidade. A Argentina, por exemplo, que poderia ser um potencial exportador de gás natural, ainda se mostra incapaz de fazer os investimentos necessários para instalar os gasodutos e outros equipamentos para redobrar a produção e estar em condições de exportar mais.

Mas, por exemplo, do ponto de vista económico, e também político, a Venezuela ganhou algo na relação com os Estados Unidos por causa desta guerra?
Um pouco. Podíamos falar da importância do preço do petróleo, mas temos de ter presente o estado da indústria petroleira venezuelana. Não tem havido investimento e a produção é muito mais baixa do que quando Hugo Chávez chegou à presidência.

A Venezuela bolivariana, agora presidida por Nicolas Maduro, não está em condições de capitalizar politicamente isso?
Muito pouco. Evidentemente, os Estados Unidos aproximaram-se da Venezuela, e a União Europeia decidiu também ter uma certa aproximação, mas, sim, é mais por motivos políticos do que económicos. E, contudo, a aproximação é bastante limitada, sobretudo a partir do forte reconhecimento que faz a Venezuela da sua aliança com a Rússia. De facto, a visita do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, a Caracas - e também a Manágua, Havana e Brasília - é prova disso.

Faz sentido falar do Sul Global quando se fala da América Latina?
Para mim, o conceito, digamos, é uma mistura do de Terceiro Mundo, com o dos países não alinhados. E então encontramos casos bastante paradigmáticos. Por exemplo, a China como pertencente ao sul global ou o México, que é um país da América do Norte, também pertencente ao sul global. E isso marca uma série de diferenças importantes na hora de falar desse conceito. Teoricamente, é uma ideia de regionalização onde aparecem países asiáticos, países africanos, países latino-americanos, mas o que fazemos com a Austrália e a Nova Zelândia? São parte do sul global? Ou o que fazemos com o Japão e a Coreia do Sul? Também são parte do sul global? China sim é, os outros não...

Mas então é, de certa forma, uma construção artificial? Por exemplo, China, Índia, México e Brasil podem ter pontos de contacto, mas nunca terão uma ação política comum?
É muito difícil. É verdade que temos os BRICS, onde convergem Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, além de agora se querer fazer algumas incorporações mais, com a proposta da Argentina para se vincular ao projeto. Mas, na realidade, essa ideia dos BRICS não tem a força que tinha no início do século XXI. E talvez, precisamente, um dos problemas de Lula da Silva é que continua a pensar nos termos de quando foi presidente do Brasil pela primeira vez, entre 2003 e 2010.

Esse é um ponto interessante, porque Lula foi eleito agora, 20 anos depois da primeira vez, e tem de lidar com um mundo que mudou muito.
Radicalmente. E ele, acho eu, é bastante incapaz de assimilar a mudança. Por exemplo, se o projeto de mediação do Brasil e da Turquia no conflito iraniano tivesse tido lugar agora, não só teria fracassado como fracassou então, mas o custo pago pelo Brasil teria sido maior.

Acha que Lula não fez, não sei se poderemos dizer assim, um aggiornamento em política externa?
Eu acho que não, e a palavra é adequada.

E pode haver erros de cálculo graves, como responsabilizar os Estados Unidos pela continuação da guerra na Ucrânia?
Acusar os Estados Unidos ou até mesmo a União Europeia de estar a sustentar a guerra, comparar o agressor com o agredido no caso da guerra da Ucrânia, dizer que a Ucrânia tem de se resignar a perder a Crimeia, parece-me que são tudo afirmações que excedem um pouco a intenção de Lula de capitalizar uma situação para potenciar o papel do Brasil como ator internacional relevante.

Lula destruiu com estas declarações vistas como complacentes com a Rússia o capital de expectativa que havia depois de Bolsonaro?
Absolutamente. Acho que a comunidade internacional, e quando falo da comunidade internacional, refiro-me sobretudo aos Estados Unidos e à União Europeia, puseram demasiadas expectativas em Lula e na sua mais recente chegada à presidência do Brasil. A sua ideia de "vamos repor o Brasil no mapa" vai nessa linha. Mas não há que esquecer, em primeiro lugar, o que foi a tradicional política brasileira de relações internacionais, o Itamaraty continua sendo Itamaraty, e aquilo que foi a presença de Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores foi mesmo uma exceção.

Está a dizer que a diplomacia brasileira tem uma continuidade que não depende do presidente e, por isso, vota contra a Rússia nas Nações Unidas, mas ao mesmo tempo não adota sanções? Que sabe tradicionalmente gerir esse equilíbrio?
É uma diplomacia muito capaz. É, de longe, a melhor diplomacia da América Latina, tem uma continuidade muito importante e, de facto, agora fala-se numa revolução copernicana na política brasileira, mas não é assim. Jair Bolsonaro estava em Moscovo a visitar Vladimir Putin pouco tempo antes da invasão da Ucrânia e depois não retirou o Brasil dos BRICS. O Brasil continuou a ser um membro importante dos BRICS. E apesar de ter visitado Taiwan durante a campanha eleitoral, Bolsonaro soube também recompor, é verdade que devido a importantes pressões, mas soube recompor a sua relação com a China. E a China continuou a ser o principal sócio comercial do Brasil, a China continuou a investir no Brasil e isso fez com que a China fosse o primeiro parceiro comercial do país. É verdade que há questões de matizes diferentes do passado, mas, em termos coloquiais, poderia dizer-se que Lula falhou a travagem quando falou na sequência da visita à China, apoiando o plano de paz chinês .

É possível para a diplomacia do Brasil corrigir as declarações de Lula?
Julgo que se vai tentar e aí também vai haver um fator importante que tem a ver com o tratado entre o Mercosul e União Europeia. Lula também carregou contra a Europa em relação ao conflito com a Ucrânia, mas se o Brasil quer manter essa sua imagem de neutralidade, essa imagem de equidistância entre Estados Unidos e China, vai precisar de se aproximar mais da União Europeia.

O Brasil tem interesse total em assinar o acordo do Mercosul com a União Europeia, certo?
Em princípio, tudo indica que sim, mas claro que internamente também há setores que são contrários ao tratado, setores mais protecionistas. Mas em linhas generais o Brasil tem interesse total em assinar o tratado. Voltando, por exemplo, a essa linha de continuidade da política externa brasileira, não há que esquecer que durante muito tempo, inclusive quando Celso Amorim, agora de novo conselheiro do presidente, era ministro das Relações Exteriores de Lula, o Brasil resistiu a incorporar-se na OCDE, o que mostra o nacionalismo e protecionismo da política externa do Brasil. Dessa perspetiva, há setores que resistem a aproximar-se da União Europeia.

A China é o principal parceiro comercial do Brasil, mas também é o principal parceiro comercial de outros países da América Latina, como o Uruguai, por exemplo.
Sim, do Uruguai e de praticamente todos, à exceção do México, pela proximidade dos Estados Unidos.

Há alguma ameaça em termos do funcionamento democrático dos países da América Latina? Casos conhecidos em que a China se envolveu na política interna usando a sua influência económica?
De momento a China tem mantido uma certa distância em relação à política, mas na medida em que a sua presença económica se intensifica a sua intromissão quotidiana ficará maior. Vimos isso, por exemplo, durante a pandemia, em alguns países. Quando a China recebia alguma crítica à sua política de diplomacia de máscaras, os embaixadores tinham uma atitude muito beligerante e faziam fortes críticas aos países onde estavam presentes. O caso do Chile é um exemplo muito concreto disso. As intenções da China de estar presente no setor da defesa são cada vez mais importantes e isso deriva também em decisões políticas. Por exemplo, a Argentina tem de enfrentar agora a renovação de parte da sua força de combate aéreo e está em discussão a compra de aviões de caça de combate, ou seja, se vão comprar aviões chineses ou aviões dos Estados Unidos, os F16. Então, claro, isso implica que há uma necessidade de fazer lobby, de estar presentes em decisões políticas cada vez mais importantes.

Estamos a falar de um país que é dos mais fortes da América Latina. Podem os Estados Unidos influenciar as opções políticas da Argentina, em desfavor dos aviões chineses?
Poder, podem, o que acontece é que também depende da vontade política do governo argentino.

Mas a questão de escolher entre aviões chineses ou americanos, será uma questão meramente económica?
Não, será também uma decisão política. A questão vai estar em quando se tomará a decisão da aquisição de novos aviões de combate, se será tomada por este governo, em que há simpatias com a China. Se a decisão for tomada por um novo governo, a proximidade aos Estados Unidos provavelmente já seria maior. Mas não nos podemos esquecer que dada a crise económica que vive o país, a necessidade de ter apoio do FMI é fundamental e aí, apesar de termos um governo que é peronista, dado o poder que têm os Estados Unidos sobre o Fundo, a proximidade aos Estados Unidos alargou-se e daí, por exemplo, a recente visita de Alberto Fernandes a Joe Biden na Casa Branca.

Falamos da Argentina e de uma provável alternância política, mas isso é algo que tem existido muito nos últimos anos na América Latina e agora até deu origem novamente a uma vaga de esquerda. Essa alternância é sinal de que a democracia funciona hoje na América Latina?
O bom é que estamos numa era de alternância, ao contrário do que aconteceu na primeira década do século XXI, onde assistimos a um período de governos longos, seja de pessoas, aí estava Chávez presidente entre 1999 e 2013, quando morreu, o boliviano Evo Morales, que teve vários mandatos, e governos sucessivos também de partidos, a Frente Ampla no Uruguai, o PT no Brasil. Isto já não é assim, aliás, na verdade, quando se fala de uma nova viragem à esquerda na América Latina, é um fenómeno que também deve ser matizado.

Não é uma repetição do fenómeno de há 20 anos?
O fenómeno de há 20 anos também era um fenómeno muito diferente, havia muitas diferenças entre os governos, teoricamente.

A única figura em comum é Lula.
As únicas pessoas em comum são Lula e também não esquecer o caso de Daniel Ortega, na Nicarágua. Sim, Lula foi capaz de reinventar-se e voltar. Havia então governos de esquerda mais democráticos, no caso do Brasil, no caso do Chile, no caso do Uruguai, havia governos claramente alinhados no populismo bolivariano - Bolívia, Equador, a própria Venezuela. E também havia governos mais indefinidos, como na Argentina o dos Kirchner. Definir o peronismo, mesmo que seja o kirchnerismo, como de esquerda, é algo que, pelas minhas origens argentinas, me incomoda bastante. Há quem discorde absolutamente da minha postura, mas as coisas são como são. E, neste momento, o que vemos é que, além das diferenças, e há muitas entre os diferentes governos progressistas (até porque agora, em vez de "bolivariano", que caiu em desgraça, usa-se "progressista"), mas além das diferenças de todo o tipo, são mesmo distantes anos-luz. Acho que mais do que uma viragem à esquerda, o que temos pela frente é a emergência de um voto de protesto, de um voto anti-oficialista, de um voto de desafeição com o que está a acontecer, a tal ponto que, das 15 últimas eleições presidenciais celebradas na América Latina, só numa, na Nicarágua, ganhou o oficialismo, em todas as outras ganhou a oposição. E, se virmos as eleições que se deverão realizar na América Latina este ano, no Paraguai, na Guatemala e na Argentina, é muito provável que em nenhum destes três casos ganhe a esquerda.

A América Latina não está no Conselho de Segurança da ONU com um assento permanente. O Brasil é o grande candidato, mas fala-se muito que são os próprios latino-americanos, começando pela Argentina e o México, que constituem os principais obstáculos. É difícil um consenso para apoiar um país só?
Estamos num estado bastante complicado que atravessa todo o processo de integração regional. Dada a fragmentação latino-americana, é impossível alcançar os mais mínimos consensos, tanto na agenda regional como na agenda internacional. O caso do Conselho de Segurança é um deles e, inclusive, os países que citava, que são o México e a Argentina, também têm veleidades de ocupar um assento no Conselho de Segurança. Agora, dito isto, se já na América Latina é impossível alcançar um consenso para ter um candidato único a uma hipotética ampliação do Conselho de Segurança da ONU, no seio do próprio Conselho de Segurança, alcançar um consenso sobre a reforma do Conselho é, hoje, algo impossível.

As divisões latino-americanas aqui são secundárias ao processo?
Totalmente.

leonidio.ferreira@dn.pt

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