Brasil e Argentina estudam criação de moeda única sul-americana

Lula da Silva e Alberto Fernández anunciaram em Buenos Aires a ideia do "sur". Ministros das Finanças falam em "longa estrada" e em "dificuldades". E alguns economistas desdenham: "é sur... real" e "igual ao euro mas só com Grécias".
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Lula da Silva e Alberto Fernández, aproveitando a visita oficial do presidente do Brasil à Argentina, anunciaram o início de estudos para a criação de uma moeda única no espaço sul-americano, sob o nome de "sur". A eventual divisa comum serviria exclusivamente para operações comerciais e financeiras entre os países, sem eliminar o real brasileiro nem o peso argentino. Ainda assim, tornar-se-ia o segundo maior bloco do tipo no mundo, só atrás da zona euro.

"Pretendemos quebrar as barreiras nas nossas trocas, simplificar e modernizar as regras e incentivar o uso de moedas locais. Também decidimos avançar nas discussões sobre uma moeda sul-americana comum que possa ser usada tanto para fluxos financeiros quanto comerciais, reduzindo custos operacionais e a nossa vulnerabilidade externa", escreveram Lula, empossado no dia 1 de janeiro chefe de Estado brasileiro, e Fernández, há pouco mais de três anos à frente do governo argentino, em artigo no jornal Perfil, de Buenos Aires.
"Não podemos depender de fornecedores externos para poder ter acesso a insumos e bens essenciais para o bem-estar de nossas populações", afirmaram ainda os políticos, amigos de longa data, e ambos de centro-esquerda.

Ao canal brasileiro Bandnews, entretanto, Fernández disse que a bola está mais com Lula do que com ele. "Falámos com o Lula da moeda única e eu vi-o com muito entusiasmo mas tive que ser franco e dizer que é uma decisão mais dele do que minha, eu já aceitei tomar a decisão".

O estudo surge num contexto de grave crise económica do lado argentino, com inflação perto dos 100%, e de forte polarização do lado brasileiro, depois de Lula ter ganho as eleições de 30 de outubro com menos de 51% dos votos e de ter sofrido uma ameaça de golpe de Estado no último dia 8, numa invasão às sedes dos três poderes, em Brasília, protagonizada por apoiantes do derrotado nas urnas, Jair Bolsonaro.

Por isso, no artigo conjunto, os dois líderes, depois de falarem da necessidade de reindustrialização de Brasil e Argentina e de defenderem que uma maior integração das cadeias produtivas de ambos os países pode ajudar a mitigar choques externos como os vistos durante a pandemia de covid-19, sublinharam o compromisso "com a democracia" e condenaram "todas as forças de extremismo antidemocrático e de violência política".

Os ministros da área também abordaram o tema. "Haverá um estudo dos mecanismos de integração de comércio, mas eu não quero criar falsas expectativas: é o primeiro passo de uma longa estrada que a América Latina terá de percorrer", disse Sergio Massa, o ministro da Economia argentino ao jornal Financial Times.
Fernando Haddad, ministro da Fazenda de Lula, alertou, já em solo argentino, para "as dificuldades" da criação do "sur". "O problema é exatamente a moeda. Nós estamos a quebrar a cabeça para encontrar uma solução, alguma coisa em comum, alguma coisa que nos permita incentivar o comércio porque a Argentina é um dos países que compram manufaturados do Brasil e a nossa exportação para a Argentina está caindo, tudo passa por driblar a dificuldade deles, estamos pensando em várias possibilidades".
Leonardo Trevisan, professor de Economia e de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing, diz ao DN/Dinheiro Vivo que a moeda única no Mercosul, a organização que inclui, como membros plenos, o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, "é um desejo histórico, desde o tempo da criação do euro, na Europa".

"E continua a ser porque o euro foi muito mais solução do que problema, foi, afinal, o que gerou a operacionalidade da UE", lembra. "Na crise de 2008, a América do Sul sentiu muito o peso do dólar e agora em 2023 os custos da transação, por serem em dólar, têm um peso financeiro altíssimo, daí que se pense na moeda única como solução, porém, bom, porém há sempre um porém por cada vantagem".

"Se a Europa já é desigual, o que dizer da América do Sul, com países como o Brasil, com 210 milhões de habitantes, e o Uruguai, com três, por outro lado, o Brasil tem uma reserva de 350 milhões de dólares, a Argentina diz ter uma de sete, mas há quem diga que não chega a metade disso, são diferenças muito profundas entre os dois países que estariam para o "sur" como a Alemanha e a França estão para o euro", diz Trevisan.

Outros economistas usaram as redes sociais para desdenhar da ideia, em tom preocupado mas também bem humorado. Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central, chamou ironicamente a iniciativa de "sur real".
Noutra publicação, partilhou uma entrevista dele ao jornal Folha de S. Paulo, de junho de 2019, onde já criticava o plano do ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, antecessor de Haddad, de criar uma moeda com o país vizinho. "Em 2019 eu achava que a ideia de Paulo Guedes não prestava. Hoje eu tenho plena certeza que não presta".
Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social e ex-ministro das Comunicações do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), chamou de "brincadeira" a criação da moeda comum com a Argentina, "um país com quase 100% de inflação".

O economista Nelson Marconi, coordenador do programa de governo de Ciro Gomes nas corridas eleitorais de 2018 e 2022 e pesquisador visitante da Universidade Harvard, alertou para a necessidade de criar uma taxa de câmbio para usar as reservas em "sur" na compra ou venda de outros países. Assim, a América Latina teria o "mesmíssimo problema do euro", com "perda de autonomia para a política macroeconómica".

O diretor de ações globais da XP International, Paulo Gitz, também comparou o "sur" ao euro: "É como a Europa, exceto que todo mundo é a Grécia...", ironizou.
Lula chegou à Argentina na noite de domingo, 22 de janeiro, na primeira viagem já como presidente empossado do seu terceiro mandato. Teve encontro bilateral com Fernández na segunda-feira, 23 de janeiro, e na terça-feira, 24 de janeiro, participará, em Buenos Aires, na 7ª Cimeira da Celac, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos. Na quarta-feira, 25 de janeiro, segue para Montevideu para se encontrar com Luis Lacalle Pou, presidente do Uruguai.

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