Bolsonaro usa o Bicentenário como tudo ou nada eleitoral
Os 200 Anos da Independência do Brasil foram festejados em clima tenso de campanha para as eleições presidenciais de dia 2 de outubro. Jair Bolsonaro, o chefe de Estado que busca a reeleição, pediu votos, citou o seu slogan, enumerou feitos do governo e evocou até o Golpe Militar de 1964, que resultou em 21 anos de ditadura, de que é adepto. Os outros principais candidatos, Lula da Silva, Ciro Gomes e Simone Tebet, usaram, por sua vez, os respetivos tempos de antena para se contraporem. Com isso, os convidados oficiais, como Marcelo Rebelo de Sousa, e os símbolos das comemorações, como o coração de Dom Pedro conservado em formol, passaram para segundo plano.
"O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", disse Bolsonaro, utilizando o seu slogan d e campanha, em entrevista à estatal TV Brasil, antes de enumerar realizações do governo, como a redução recente do preço da gasolina, ao jeito de um bloco de propaganda eleitoral, na primeira intervenção do Dia da Comemoração do Bicentenário brasileiro.
Logo depois, num pequeno-almoço ao lado dos empresários que, em trocas de mensagens de WhatsApp, disseram preferir uma ditadura no país ao triunfo de Lula, razão pela qual tiveram o sigilo telefónico bloqueado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), citou o Golpe Militar de 1964 que instituiu a ditadura, censura e tortura no país. "Seguramente passámos por momentos difíceis, a História mostra-nos, 1822, 1935, 1964, 2016 e 2018, agora em 2022, a História pode repetir-se, com o bem vencendo o mal."
Bolsonaro dirigiu-se depois para o desfile cívico-militar em Brasília, que reuniu ora tanques de guerra, ora tratores, símbolo do apoio dos latifundiários ao governo. Esteve rodeado pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e pelo presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, mas sem Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, presidentes das câmaras alta e baixa do Congresso, nem Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ausências muito notadas para se demarcarem do tom de campanha.
"Deus deu-me uma segunda vida, hoje vocês têm um governo que defende a família e a polícia, é leal ao povo e acredita em Deus, há poucos anos o país estava atolado em corrupção, começámos a mudar o nosso Brasil, enfrentámos a pandemia e a guerra, mas o país ressurge com uma economia pujante e uma das gasolinas mais baratas do mundo, somos um país que respeita a vida desde a conceção, é contra o aborto", disse.
"Eles não voltarão depois de 14 anos à cena do crime, o povo está do lado do bem, contra o mal, no dia 2 de outubro vamos todos votar", encerrou, sob gritos de "Lula ladrão" e ataques ao STF e às sondagens, que dão o rival à sua frente.
Bolsonaro seguiu depois para o Rio de Janeiro onde participou numa passeata de moto (uma motociata) antes de falar aos milhares de apoiantes reunidos junto à praia de Copacabana, numa das várias manifestações de apoio do dia em diferentes cidades. Recebido aos gritos de "mito", o presidente subiu ao trio elétrico de onde garantiu: "Falo palavrão, mas não sou ladrão", num ataque a Lula da Silva, ao qual se referiu como "quadrilheiro de nove dedos", por este ter perdido um mindinho nos seus tempos de metalúrgico. Abordando ainda a economia, o presidente garantiu que os números são bons, apesar da inflação.
Os outros candidatos contrapuseram-se ao anunciado resgate das celebrações pelo presidente-candidato nos tempos de antena. "O Brasil está completando 200 anos de sua independência, essa data é para ser comemorada com alegria. Infelizmente não é o que acontece hoje: esse governo abandonou o povo e só prega o ódio e a venda de armas, eles ameaçam a nossa soberania, o respeito à democracia, a felicidade do povo, com comida na mesa e oportunidades", disse Lula no seu espaço.
Noutro ponto, acusou Bolsonaro de "usurpar o 7 de Setembro do povo brasileiro como se fosse uma coisa pessoal dele e não de 215 milhões de brasileiros".
Ciro Gomes pediu para "que Deus nos abençoe para que nada, nem ninguém, sejam capazes de roubar a nossa paz e a nossa liberdade". Simone Tebet surgiu envolvida numa bandeira do Brasil.
Já em 2021 Bolsonaro fizera do 7 de Setembro uma espécie de comício, chamando um juiz do STF, Alexandre de Moraes, de "canalha" e estimulando camionistas leais ao governo a simular uma espécie de cerco ao tribunal. Na ressaca desses atos, no entanto, seria obrigado a recuar assustado com as reações negativas dos poderes judicial e legislativo e dos mercados financeiros, pedindo desculpas dias depois ao juiz em causa.
As celebrações ocorreram em centenas de cidades do Brasil, incluindo a maior delas, São Paulo, a capital à época da Independência, Rio de Janeiro, e Brasília. Foi na atual capital federal que Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República de Portugal, passou os primeiros dois dias da viagem oficial ao país sul-americano.
Ainda na noite de terça-feira, reuniu-se finalmente com Bolsonaro, depois de há dois meses ter visto um encontro com o homólogo brasileiro ser desmarcado por este. Bolsonaro justificou aquela decisão, pela imprensa, dando a entender ter ficado desagradado com uma conversa, na véspera, de Marcelo com Lula. Na altura, o chefe de Estado português, que se encontraria com mais dois ex-presidentes brasileiros, Michel Temer e Fernando Henrique Cardoso, ao longo daquela visita, desdramatizou o incidente diplomático e reafirmou a disposição de voltar ao Brasil por ocasião do Bicentenário da Independência.
Segundo Marcelo, "seria incompreensível que Portugal não estivesse representado ao mais alto nível naquilo que é um momento histórico único na vida do Brasil e de Portugal". "Não tem nada a ver com que o que se passa na vida interna dos países, como já não teve quando há 100 anos [nas comemorações do Centenário da Independência do Brasil] o presidente [da República Portuguesa] António José de Almeida aqui veio num momento difícil da vida política portuguesa e da vida política brasileira".
Após os cerca de 20 minutos à conversa com Bolsonaro na sede do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, o presidente português disse que teve tempo para contar a história de Dom Pedro IV (Dom Pedro I, no Brasil) ao homólogo. "Aproveitei para contar a história de D. Pedro, a vida de D. Pedro. Isso foi um grande ponto de partida", afirmou, antes de visitar o espaço onde está exposto o coração do monarca trazido de Portugal, para as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, conservado em formol numa cápsula de vidro - "um gesto simbólico", classificou.
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