Em São Paulo, a direita goleou a esquerda, na eleição que melhor reflete o Brasil.
Em São Paulo, a direita goleou a esquerda, na eleição que melhor reflete o Brasil.Miguel SCHINCARIOL / AFP

Bolsonaristas, da IURD e descendentes da ditadura. O Brasil é um país de direita?

Em São Paulo, na eleição municipal que nacionalizou o debate, os candidatos de direita golearam os de esquerda. No país, entre os partidos que elegeram mais prefeitos estão o do ex-presidente, o da Igreja Universal do Reino de Deus e dois descendentes da ditadura.
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A aguardada polarização entre direita e esquerda nas eleições municipais em São Paulo aconteceu. Mas com um empate triplo entre dois candidatos de direita e só um de esquerda. Ricardo Nunes, apoiado timidamente pelo ex-presidente Jair Bolsonaro mas convictamente pelo governador estadual e eventual candidato presidencial daqui a dois anos Tarcísio de Freitas, teve 29,48%. Guilherme Boulos, o escolhido do presidente Lula da Silva, 29,07%. E Pablo Marçal, o outsider preferido extraoficialmente pelo bolsonarismo, 28,1%. Em rigor, a direita goleou a esquerda na eleição que melhor reflete o Brasil. 

Por falar em Brasil, entre os seis partidos que mais elegeram prefeitos país afora, estão o PP, com 743, e o União Brasil, com 578, ambos descendentes do ARENA, que serviu de sustentáculo à ditadura militar. Logo a seguir, ficou, com 509, o PL, onde milita Bolsonaro. E, depois, o Republicanos, com 430, que abriga Tarcísio e é o braço político da IURD.

Acima deles, apenas dois pega-tudo, como se diz no Brasil, isto é, partidos sem compromisso ideológico: o MDB, vencedor em 2020, elegeu 846 prefeitos; e o novo dominador, o PSD, venceu em 877 das 5569 cidades.

O Brasil é então um país de direita? Três politólogos responderam ao DN. “O brasileiro médio era, na primeira década do século, conservador nos costumes e estatista na economia, como no gaullismo, agora, o crescimento dos evangélicos acentuou o conservadorismo e a ‘uberização’ levou a juventude digitalizada a votar à direita porque, mesmo com condições de trabalho muito precárias, abraça o anarcocapitalismo”, resume Vinícius Vieira, cientista político da Fundação Armando Álvares Penteado. “E essa nova pequena burguesia”, acrescenta, “começa a replicar até sinais do fascismo”.

“Com isso, vaticino que Tarcísio seja presidente já em 2026 e que o seu grupo político fique uns 20 anos no poder porque tem viabilidade entre o eleitor pobre ou rico, evangélico ou católico, negro ou branco, antissistema ou pro status quo”, remata. 

Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro, defende que “o espectro ideológico do Brasil, como noutros países, foi puxado para a direita pela extrema-direita”. “Logo, o centro passou a ser de direita, com entendimento conservador patriarcal sobre direitos civis, família, corpos...”. “O Brasil tem uma minoria de extrema-direita, em torno de uns 20%, muito articulada nas redes e nas ruas, e uma minoria de esquerda, de outros 20%, mas para ganhar eleições há que cativar um largo centro sobretudo conservador nos costumes”, completa.     

Entretanto, a política brasileira tem uma estrutura incomum. “No Brasil, os partidos desempenham duas funções: a primeira, como sucede na maioria dos países, é organizar as preferências da sociedade a partir da identificação ideológica, porém só dois partidos fazem isso, o PT [de Lula], o principal deles, e o PSDB [de Fernando Henrique Cardoso], que vem se desidratando eleição após eleição”.

“A função de todos os demais partidos que não têm identificação ideológica clara”, assinala Goulart, “é de organizar as elites políticas para concorrer às eleições, dividindo entre essas elites os fundos para as campanhas, e, uma vez eleitas as elites, distribuir recursos, cargos e acessos”. “Entretanto, num país continental como o Brasil, esses partidos não são verticais, as direções dão espaço para que as lideranças locais façam os arranjos que pretenderem”.

Paulo Ramírez, politólogo da Escola Superior de Propaganda e Marketing, vê a ditadura militar ainda plantada no país, 40 anos depois da redemocratização. “Esses partidos que ganharam as municipais são resquícios das oligarquias, compostas por latifundiários e grandes empresários de famílias nalguns casos até escravocratas, que apoiaram o regime militar, o impeachment de Dilma e a prisão do Lula”. “Esses grupos detêm, regionalmente, os partidos, a riqueza e os meios de comunicação, eles são o reflexo da má distribuição de rendimentos no país”, conclui.

O efeito Kassab

O partido com mais prefeituras no Brasil a partir de agora, o PSD, de Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo de 2006 a 2013, merece comentário à parte dos observadores. “O PSD é o partido da máquina burocrática”, diz Ramírez.

Mayra Goulart lembra que “o PSD foi organizado tendo o MDB [oposição permitida à ditadura militar que, por anos, foi o maior partido brasileiro e gerou presidentes como Michel Temer e outros] como molde mas, ao contrário deste, constituído a partir de lideranças locais aglomeradas, tem um nome nacional, Kassab, como figura ascendente, o que o torna mais eficaz”.

“Kassab, depois de ser prefeito de São Paulo, em vez de se arriscar em voos mais altos, preferiu ter poder de bastidor e criar um partido”, defende Vinícius Vieira. “A ideia era ter um partido ‘pega tudo’, como o MDB, de ‘extremo centro’ ou de ‘direita, centro e esquerda’, como definiu o próprio Kassab”. “Ou seja”, conclui, “o partido mais forte do Brasil tende sempre a ser um partido sem ideologia definida, como agora o PSD, que soma Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro apoiado por Lula, a Ratinho Junior, governador do Paraná claramente à direita”.

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