Bolsonarismo é passado, mas continua presente e ainda pode ter futuro

Bolsonaro, com a justiça à perna, terá força para evitar o canibalismo da sua heterogénea base? Conseguirá, como o ídolo Trump, manter influência longe do poder? E há candidatos à sucessão na extrema-direita? Para onde vai o espólio de 58 milhões de votos? Especialistas respondem.
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As eleições no Brasil de há uma semana deixaram duas certezas: a candidatura de centro-esquerda de Lula da Silva ganhou e o candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, mesmo perdendo, somou mais votos, 58,2 milhões, do que no sufrágio em que se elegeu, 57,7 milhões, quatro anos antes. Esse capital eleitoral do presidente cessante ficará nas suas mãos? Ou de outrem? É sólido? Ou vai desvanecer-se em versões mais moderadas? O DN ouviu especialistas sobre o presente, o futuro próximo e o não tão próximo do bolsonarismo.

Vinícius Vieira, professor da Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo, avalia que, "se Lula governar mal, Bolsonaro terá força em 2026, mas, por ora, a base bolsonarista tende a ser canibalizada e fragmentada".

Mayra Goulart, cientista política na Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra que "Bolsonaro corre o risco de ser preso nos próximos anos e já está a perder apoio das elites políticas, mas pode, entretanto, manter o estatuto de líder da sociedade civil".

"No campo normativo, Bolsonaro realmente conseguiu construir um senso de maioria nas pessoas. E eu diria que esse é o principal legado que o bolsonarismo deixa ao Brasil, mesmo diante da mudança do chefe do Executivo, e que tende a permanecer, porque, afinal de contas, foi uma mudança na própria maneira de se pensar e fazer política no Brasil", afirma Guilherme Casarões, professor da Faculdade Getúlio Vargas, de São Paulo.

Para o cientista político e fiósofo Marcos Nobre, "Bolsonaro seguirá agora o modelo de Donald Trump", o ainda muito influente político americano derrotado em 2020 por Joe Biden.

"Quem sustentou Bolsonaro foi o "penta B"", afirma Vieira, referindo-se à sua classificação de apoiantes do presidente cessante em cinco bês: a Bíblia, eleitores evangélicos, o Boi, grandes latifundiários, a Bala, militares e polícias, a Boçalidade ou bolsonarismo-raiz, os que se reveem nas mais radicais e autoritárias ideias do líder, e a Branquitude, uma vez que onde há maioria branca da população Bolsonaro tendeu a ser o mais votado.

No entanto, diz o politólogo, alguns desses bês começam a fraquejar no apoio ao derrotado nas urnas. "O B de Bíblia, via Silas Malafaia e Edir Macedo, os dois bispos mais mediáticos, agora diz que é para rezar por Lula, um, e que é para perdoar o Lula, o outro, portanto já está a aderir ao novo governo, pelo menos temporariamente, porque precisa de paz social para os seus negócios prosperarem", afirma. Esse grupo, por "politicamente preferir ficar nos bastidores", não oferece, por ora, alternativa, em forma de candidato, em 2026.

"Já o B de Boi opõe-se àquilo que Bolsonaro quis fazer com esses bloqueios de estradas, um golpe de Estado - vamos dizê-lo com todas as letras -, e a tendência é que esse grupo ligado ao agronegócio adira, se não a Lula, pelo menos a uma direita mais moderada, cujos nomes podem ser Tereza Cristina, ex-ministra da Agricultura de Bolsonaro, ou Romeu Zema, governador de Minas Gerais."

"A Bala está dividida", segundo Vieira. "O ex-vice Hamilton Mourão, que se quer consolidar como líder do "partido militar", disse que um eventual golpe colocaria o Brasil numa posição internacional desconfortável, mas não disse que acha um golpe antidemocrático, ele deixou entender que esse golpe só não foi realizado por conta da oposição do governo Biden. Entre polícias, as bases parecem estar com Bolsonaro mas não as chefias, como Mourão, que, quem sabe ao lado de Sergio Moro, ambos eleitos senadores em secções eleitorais no Sul do país, pode lançar candidatura em 2026."

"Em resumo, de três bês que apoiaram Bolsonaro, dois e meio já desembarcaram. Sobram o B de Brancos - registe-se que houve saudações nazis numa cidade, São Miguel do Oeste, de Santa Catarina, numa manifestação pró-Bolsonaro - e o B de Boçais, que são os que andam na rua a colocar fogo no país e a pedir um líder ainda mais radical do que Bolsonaro, exigência que pode fazer surgir em 2026, por exemplo, os irmãos Abraham e Arthur Weintraub, o primeiro dos quais ex-ministro da Educação de Bolsonaro."

Para Mayra Goulart, "Bolsonaro já está a perder apoio das elites. Ele vai, portanto, ser menos um líder de pessoas com mandatos e mais um líder da sociedade civil. Os representantes eleitos no Congresso Nacional já estão a olhar para a transição e prontos para embarcar num novo projeto", afirma, tendo em conta declarações de partidos ambíguos, como o União Brasil, cujo líder, Luciano Bivar, que abrigou Bolsonaro no seu partido em 2018, afirmou recusar fazer oposição a Lula. "E isso nota-se ainda mais entre governadores, para quem é muito importante estar próximo do governo federal", completa.

Sobre o mais influente desses governadores, o bolsonarista Tarcísio de Freitas, eleito em São Paulo para gerir o segundo maior orçamento do país, superado apenas pelo federal, Vinícius Vieira alerta para as pressões que ele vai sofrer. "Tarcísio terá muita pressão do seu partido, Republicanos, ligado à IURD, igreja a quem terá com certeza de entregar a pasta estadual da educação, dos partidos de centro, sedentos por poder, que o apoiaram, e dos "bolsonaristas-raiz", que o podem considerar traidor se ele for moderado. porque não existe bolsonarismo moderado."

Por isso - e por provavelmente estar ocupado a tentar reeleger-se em 2026 - Tarcísio deve ser considerado carta fora do baralho, ao contrário dos citados Mourão, Moro, Tereza Cristina e Zema, como eventual representante de um bolsonarismo sem Bolsonaro nas próximas presidenciais.

"O bolsonarismo sem Bolsonaro é possível, porque ele tem hipóteses reais de ir preso, não agora, porque ainda tem muito apoio popular, mas no futuro, por causa da perda de apoio das elites", adverte Goulart. Sem cargo público, o ainda presidente perde o foro privilegiado - imunidade - e passa a estar à mercê dos tribunais de primeira instância como um cidadão comum, tal como Lula ficou depois de sair do Palácio do Planalto, acabando preso por Moro. Pendem sobre Bolsonaro 15 acusações na justiça.

O politólogo Guilherme Casarões, em entrevista ao portal UOL, classifica o bolsonarismo como "uma transformação profunda na própria identidade fundamental dos brasileiros. Eu sinto que muita gente votou em Bolsonaro porque acredita naquele pacote de valores que ele oferece à população, muito vazio, muito pouco propositivo, mas representando valores conservadores, cristãos, a família tradicional, o combate à chamada ideologia de género".

"Lula disse ao longo da campanha", continua Casarões, "que estava interessado em formar uma frente ampla e conversar com forças políticas que não são só de esquerda, são do centro, são de direita também, mas praticamente metade do Brasil ainda acredita que essa democracia plural e dialogada não é o caminho para o país".

"O bolsonarismo tentará enfraquecer Lula, desde o princípio, de qualquer forma", acrescenta o filósofo Marcos Nobre numa entrevista ao The Washington Post, em que compara o papel de Bolsonaro com o do seu modelo, Donald Trump.

Por ser um fenómeno novo, o futuro do bolsonarismo é mais imprevisível - afinal, é sólido ou é fragmentável, é duradouro ou é passageiro? - do que o lulismo, cujos herdeiros são identificáveis. Depois de ter prometido em campanha fazer só um mandato - em 2026 terá 81 anos -, Lula deu azo a especulações sobre a sua sucessão.

"O PT não tem um nome óbvio, e, pela primeira vez, pode ser obrigado a apoiar uma grande coligação de centro, centro-esquerda", diz Vieira. "Até porque, salvo aquele bolsonarismo boçal e aquele bolsonarismo branco, que apoiam Bolsonaro independentemente de tudo, os bolsonarismos do Boi, da Bala e da Bíblia não se ajoelham necessariamente a Bolsonaro, uniram-se a ele em nome meramente de um sentimento anti-PT e anti-Lula."

"Caso o sucessor do presidente eleito não seja Lula e não seja do PT, o Boi, a Bala e a Bíblia tenderão a aderir com mais facilidade", afirma. Nessa perspetiva, três nomes estão na calha: desde logo, o do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), experiente e com bom trânsito na direita moderada, mas também Marina Silva (Rede) e Simone Tebet (MDB), duas apoiantes recentes mas fervorosas de Lula fora do PT, ambas ex-candidatas presidenciais.

E Fernando Haddad, o delfim de Lula dentro do PT, após três derrotas seguidas - para a prefeitura de São Paulo, para a presidência e para o governo do Estado -, terá perdido capital eleitoral.

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