Multidão à espera do Papa Francisco junto ao aeroporto de Juba, no Sudão do Sul, numa visita em fevereiro de 2023.
Multidão à espera do Papa Francisco junto ao aeroporto de Juba, no Sudão do Sul, numa visita em fevereiro de 2023.Jim Huylebroek / The New York Times

Bênção de casais do mesmo sexo inquieta católicos de África

À medida que bispos e outros líderes da Igreja no continente lidam com as repercussões da declaração do Vaticano entre os fiéis, foram levantadas preocupações mais amplas sobre a possibilidade de esta resultar numa rutura entre o Papa Francisco e uma região que é um ponto demográfico de destaque para o catolicismo.
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A recente declaração do Vaticano que permite a bênção de casais do mesmo sexo causou agitação em todo o mundo, mas principalmente em África, um polo em ascensão para o futuro da Igreja Católica. Em comunicados sucessivos, os bispos de vários países falaram do medo e da confusão que a declaração causou entre os seus fiéis e consideraram-na desfasada da cultura e dos valores do continente.

Os bispos tinham também um receio mais profundo: que num lugar onde a Igreja está a crescer mais rapidamente do que em qualquer outra parte do mundo, e onde muitas formas de cristianismo competem por fiéis, a declaração pudesse abrandar a expansão da Igreja no continente.

O bispo John Oballa, da diocese de Ngong, perto de Nairobi, disse que uma mulher lhe tinha escrito a afirmar que um amigo lhe tinha dito que queria esclarecimentos sobre a declaração, caso contrário iria converter-se à Igreja Metodista.

“Há uma enorme vitalidade em muitas, muitas dioceses de África”, disse Oballa numa entrevista. “Precisamos de nos proteger contra tudo o que possa fazer descarrilar esse crescimento.”

Afirmou ainda que aconselharia os seus padres a abençoarem casais do mesmo sexo apenas se estes procurassem a força de Deus para os ajudar a “deixar de viver em uniões do mesmo sexo”.

No entanto, se o casal apenas quisesse receber a bênção e planeasse continuar a viver da mesma forma, “poderia transmitir a sensação de reconhecimento”, disse, acrescentando que aconselharia o clero “a não dar a bênção pois poderia ser escandaloso para os outros; poderia enfraquecer a fé dos outros”.

O Vaticano procurou entretanto apaziguar os bispos alarmados com a nova regra, dizendo que seria necessário ter em conta a “cultura local”, mas que esta continuaria a ser a política da Igreja. Os bispos que se opõem à mudança, segundo um comunicado, necessitam de um “período alargado de reflexão pastoral” para perceberem porque é que o Vaticano afirma que a bênção de casais do mesmo sexo está de acordo com a doutrina da Igreja.

O continente africano, onde vivem 236 milhões dos 1,3 mil milhões de católicos em todo o mundo, foi responsável por mais de metade dos 16,2 milhões de pessoas que aderiram à Igreja a nível mundial em 2021. À medida que os bispos e outros líderes da Igreja no continente lidam com as repercussões da declaração entre os seus paroquianos, foram levantadas preocupações mais amplas sobre a possibilidade de esta resultar numa rutura entre o Papa Francisco e uma região que é um ponto demográfico de destaque para o catolicismo.

“Acredito que já existe uma rebelião que começou a dizer: ‘Não vamos implementar isto’”, disse o Padre Russell Pollitt, diretor do Instituto Jesuíta da África do Sul, referindo-se às respostas dos bispos de todo o continente.
Alguns membros do clero africano manifestaram a esperança de que o Vaticano e os líderes da Igreja em África consigam ultrapassar as suas diferenças. Porém, a declaração dificultou a relação e vai obrigar a conversas difíceis entre a autoridade central da Igreja e os seus líderes africanos. Com efeito, alguns bispos chegaram mesmo a insinuar uma rutura entre os valores das nações africanas e os do Ocidente, onde alguns clérigos têm vindo a contrariar, desde há anos, as orientações do Vaticano, ao abençoarem uniões entre pessoas do mesmo sexo.

“No nosso contexto africano, embora reconheçamos a confusão existente nos países mais desenvolvidos em relação a novos modelos não cristãos de ‘união conjugal’ e ‘estilos de vida’, somos muito claros sobre o que é uma família e um casamento”, afirmou um comunicado da Conferência dos Bispos Católicos do Quénia.

Sem exceção, os líderes da Igreja em África salientaram aos seus fiéis que na declaração aprovada por Francisco é explícito que o casamento continua a ser uma união entre um homem e uma mulher. Realçaram que a doutrina da Igreja sobre o casamento não se alterou e que a declaração tem por objetivo a bênção dos indivíduos, não das suas relações.

Os bispos do Malawi e da Zâmbia comunicaram que, para evitar confusões, os seus clérigos receberiam instruções para não darem a bênção a casais do mesmo sexo. A Conferência dos Bispos Católicos da Nigéria não tomou uma posição definitiva sobre o assunto e afirmou num comunicado que «pedir a bênção de Deus não depende de quão bom alguém é». Contudo, acrescentou que “não existe qualquer possibilidade de a Igreja abençoar uniões e atos entre pessoas do mesmo sexo”, uma alusão à nuance da declaração no sentido de abençoar indivíduos homossexuais e não relacionamentos.

Jim Huylebroek / The New York Times

A Conferência dos Bispos Católicos da África Austral reiterou esta distinção no seu comunicado. No entanto, foi ainda mais longe ao dizer que a posição da Igreja era que “todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual, devem ser tratadas com a dignidade que merecem como filhos de Deus, devem sentir-se bem-vindas na Igreja e não devem ser discriminadas ou prejudicadas”.

A declaração do Vaticano revelou uma tensão para a Igreja em África: como pode acolher os homossexuais sem perturbar os crentes que defendem firmemente a doutrina da Igreja que afirma que a homossexualidade é pecado?

Alguns líderes da Igreja africana acreditam convictamente que nem sequer devem falar sobre a homossexualidade “porque não é uma questão africana”, disse o bispo Sithembele Sipuka da diocese de Mthatha na África do Sul, que é também o presidente da conferência da África Austral. Outros, acrescentou, pensam de forma diferente por conhecerem de perto pessoas homossexuais. “A nossa experiência não nos diz que é algo que tenham recebido da Europa”, afirmou.

A sua conferência interpretou a declaração como significando que os indivíduos que mantêm relações entre pessoas do mesmo sexo podem ser abençoados, disse, mas individualmente e não conjuntamente.

Meses antes da declaração do Vaticano, o bispo Martin Mtumbuka, da diocese de Karonga, no Malawi, proferiu um sermão impetuoso, acusando os párocos ocidentais de tentarem distorcer a palavra de Deus com vista à aceitação dos homossexuais, como forma de atrair um maior número de padres e outras vocações religiosas.

“Qualquer um de nós, párocos, que defenda esta ideia está apenas a ser herético e a enganar-se a si próprio”, disse Mtumbuka, de acordo com uma gravação áudio do sermão, que circulou amplamente nas redes sociais após a declaração do Vaticano.

Francisco Maoza, 48 anos, um paroquiano que vive na capital do Malawi, Lilongwe, diz ter ficado aliviado quando os bispos do seu país afirmaram que não permitiriam a bênção de casais do mesmo sexo.

“Ainda acredito que a posição do Papa está errada”, disse Maoza, que é carpinteiro. “No contexto africano, mesmo na cultura do Malawi, não permitimos que os homens e as mulheres casem com pessoas do seu próprio sexo. Por isso, porque é que os padres deveriam poder abençoar essas uniões?”

Josephine Chinawa, também católica do Malawi, considera que Francisco deveria demitir-se devido a esta declaração.

“Não consigo mesmo compreender a sua motivação”, afirma. “Talvez esteja demasiado velho”.

No entanto, Pollitt referiu que alguns líderes da Igreja em África estavam a ser hipócritas. Embora critiquem severamente a homossexualidade, disse, pouco dizem sobre outras “uniões irregulares” identificadas na declaração do Vaticano, como os casais heterossexuais não casados que vivem juntos. O documento determina que os padres também os podem abençoar. Existem ainda muitos casos no continente de padres que violam as regras do celibato ao terem filhos, mas isso não é objeto do mesmo escrutínio por parte dos líderes da Igreja, disse.

“Vamos encarar os factos: em África, há muita homofobia”, afirmou Pollitt.
O desenrolar da controvérsia sobre a bênção de casais do mesmo sexo a longo prazo em África continua a ser uma questão em aberto. Alguns analistas acreditam que a tensão pode acabar por ser mínima, sobretudo porque se espera que poucos casais homossexuais peçam efetivamente a bênção.

“Não creio que tenham sequer a coragem de apresentar os seus parceiros aos pais, quanto mais de vir receber a bênção do padre”, disse Oballa.
Sipuka disse que o Vaticano e os líderes da Igreja africana acabarão por encontrar uma solução.

“Prevejo um abrandamento da posição de algumas pessoas que reagiram de forma muito veemente, à medida que o documento for sendo explicado e debatido”, afirmou.

c.2024 The New York Times Company

Este artigo foi publicado original no The New York Times

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