Autor de massacre em cinema libertado após 25 anos. Luso-brasileiro conta como sobreviveu a dois tiros
Brad Pitt acabara de entrar em cena, sentado na saída de emergência do avião ao lado de Edward Norton, no Clube de Combate, filme de David Fincher, quando Matheus Meira, estudante de medicina de 24 anos, aparece, de submetralhadora M-11 na mão, em frente ao ecrã da sala 5 do cinema do Shopping Morumbi, em São Paulo. Para pavor dos 22 espectadores da sessão da noite daquela quarta-feira, 3 de novembro de 1999, Meira dispara dezenas de tiros, mata três e fere quatro, um dos quais, a propósito da saída do assassino da cadeia após cumprir 25 anos, aceitou falar ao DN sobre o massacre.
“A noite de quarta-feira era a sessão mais barata da semana, eu estava com a minha mulher na fila 4, quando começámos a ouvir um ruído, ela perguntou ‘isto não são tiros?’, ao que eu, tonto, respondi, ‘deve ser o pipoqueiro lá fora a estourar as pipocas’”, relembra Antônio Martins, 65 anos, cidadão luso-brasileiro, filho de mãe de Mangualde e pai de Vale de Cambra, atingido com dois tiros. O ruído fora, provavelmente, o tiro de Meira contra a própria imagem no espelho da casa de banho para testar a arma.
“Entretanto”, prossegue Antônio, vestido com a camisola da seleção portuguesa em videochamada com o DN, “um rapaz loiro, alto, de 1,80m, fica, aos 22 minutos de filme, em frente à tela”. “Mas ele não sabia usar a submetralhadora, em vez de metralhar, saia um tiro de cada vez, a um rapaz acerta-lhe o olho e ele morre ali mesmo sentado, duas mulheres também são atingidas e morrem, eu sinto dois tiros mas depois, quando ele passa por mim, a minha reação foi tapar o ouvido e o olho para não ficar cego ou surdo”.
“Então, um rapaz, menor do que ele, pega-o pela frente e caem os dois, o Matheus nem esboçou reação, e o interessante, ao contrário do que chegou a ser escrito, foi que não se ouviu um grito sequer, tudo decorreu em silêncio enquanto o filme continuava a passar”.
Matheus da Costa Meira, filho de uma família de classe média de Salvador que morava sozinho em São Paulo, teria, por insanidade mental, segundo os seus advogados, sido influenciado pelo jogo de computador Duke Nukem 3D, onde há um tiroteio num cinema. Inicialmente, a tese da insanidade não colheu e o rapaz foi condenado a 120 anos. Mas, depois de uma promotora concordar em considerá-lo inimputável, após ter tentado matar um companheiro de cela com uma tesourada na cabeça por estar a ouvir a TV num volume elevado durante a noite, a pena passou para os 25 anos que acabam de expirar em setembro.
Na memória de Antônio, a cena seguinte da noite do crime “é um casal de japoneses a rastejar”. “Nós rastejamos também, eu com as calças ensanguentadas e a minha mulher ilesa, do cinema para a área de alimentação mas já deviam ser umas 23h, estava tudo fechado, fiz então barulho para os seguranças ouvirem e virem”.
Levado à prisão, julgado e condenado, o criminoso passou por três estabelecimentos antes de cumprir o final da pena no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Salvador. Na decisão que determinou a saída de Matheus, hoje com 49 anos, é dito, segundo o jornal Folha de S. Paulo, que o autor do crime tem condições de voltar ao convívio social – mas está proibido de adquirir armas, ingerir álcool e drogas, frequentar bares, festas populares e casas de jogos. Vivaldo Amaral, advogado de defesa de Meira, não comenta.
“Acho, sim, que ele merece estar em liberdade, ele cumpriu 25 anos, dos 24 aos 49, perdeu toda a juventude, acho que pagou o que tinha a pagar, não me adianta nada viver amargurado”, diz Antônio, que além de engenheiro é bacharel em Direito, ao DN.
“Aliás, para mim essa noite foi uma dádiva porque, além de um tiro na perna, levei um tiro no testiculo direito, ou seja, fiz uma espécie de vasectomia unilateral que me obrigou, a mim e à minha mulher, a tratamentos de fertilização que geraram os meus gémeos, Clarice e Arthur, hoje com 14 anos, que são a minha alegria”.
“E não tenho trauma, é verdade que eu e a minha agora ex-mulher demoramos uns tempos a ir ao cinema e na primeira vez assustamo-nos muito porque um tipo à nossa frente tirou uma caixa da mochila, chamamos até o segurança, mas a caixa era dos sapatos que ele tinha acabado de comprar e estava a experimentar segunda vez em pleno cinema”, ri-se. “Mas fiz questão de comprar o DVD para ver o que restava do Clube da Luta [Clube de Combate] logo depois daquela noite e até já o revi, é um filmaço não? E neste sábado fui ver o Robô [Robot] Selvagem com a minha filha e só tive medo do ar condicionado muito alto...”.
Adepto do Sporting, em Portugal, da Portuguesa, em São Paulo, e de um clube por cada estado do Brasil – “e sei os onzes de todos eles e xingo o árbitro nos jogos” – o sobrevivente conta outro episódio de arrepiar. “Em 1983, uns 16 anos antes do caso do cinema, depois de eu entrar no carro, um ladrão disse-me para abrir a porta, eu disse que não abria e levei dois tiros, no estômago e na zona onde começam as costelas, ou seja, de tiro acho que já não morro...”.