As imagens de brasileiros vestidos de verde e amarelo a partirem vidros e a entrarem no Palácio do Planalto chegaram aos Estados Unidos como ecos de um passado recente vivido em chão americano. A cobertura feita pelos meios de comunicação traçou claros paralelos entre o que aconteceu no Capitólio a 6 de janeiro de 2021 e o que se viu a 8 de janeiro de 2023 em Brasília, bem como semelhanças entre Trump e Bolsonaro. Mas a interpretação dos factos que ocorreram foi bastante dividida, espelhando a polarização acentuada que se verifica nos dois países..Enquanto meios como o New York Times e Washington Post examinaram a entrada nos três poderes como uma invasão e uma ameaça à democracia, destacando as ligações entre Trump e Bolsonaro, os meios nas franjas deram à sua audiência um retrato diferente da realidade.."Para aqueles que ainda não ouviram, o Brasil tem estado em erupção, com grandes confrontos entre o governo corrupto e os seus cidadãos", disse o apresentador Dan Ball, no seu programa Real America with Dan Ball da cadeia de televisão de extrema-direita OANN (One America News Network). No oráculo lia-se "Brasileiros protestam contra eleição presidencial fraudulenta", enquanto Dan Ball explicava à sua audiência conservadora que muitos brasileiros "acreditam que as eleições foram viciadas" e que o presidente Lula da Silva é um "criminoso condenado e socialista" que foi "instalado." Na OANN, e não só, o apoio de Joe Biden ao presidente Lula da Silva foi enquadrado na retórica de que o presidente norte-americano é um radical de esquerda e chegou ao poder de forma dúbia.."Eles estão descontentes com o roubo da democracia", afirmou Dan Ball, que entrevistou para este segmento o brasileiro Ricardo Martins, descrito como ativista político e comentador..Martins disse que "os meios de comunicação estão a encobrir" que os protestos continuam nas ruas e mostrou fotos de "campo de detenções de manifestantes", dizendo que o governo de Lula da Silva está a prender crianças..Esta perspetiva do ataque aos três poderes em Brasília foi similar à que o apresentador Tucker Carlson defendeu no seu programa na Fox News, durante o qual disse que a eleição foi "muito claramente" fraudulenta.."Milhões de pessoas no Brasil compreendem exatamente o que se passou", disse Carlson, conhecido por posições controversas. "Eles sabem que a sua democracia foi assaltada, possivelmente para sempre.".Nas redes sociais, personalidades da extrema-direita - como o ex-conselheiro de Donald Trump Steve Bannon e o criador do movimento Stop the Steal Ali Alexander - elogiaram os eventos. Bannon, que anteriormente revelou estar a agir como conselheiro de Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, disse que os invasores eram "lutadores pela liberdade" e que a eleição foi roubada. Ali Alexander, que em novembro dizia estar a trabalhar com uma "célula de liberdade" no Brasil, defendeu que o exército brasileiro devia intervir. E até uma das condenadas pela invasão ao Capitólio, Jenny Cudd, manifestou no Twitter o seu apoio às ações dos apoiantes de Bolsonaro, chamando-lhes "patriotas do Brasil.".No rescaldo do ataque, um grupo de 70 legisladores brasileiros e norte-americanos condenaram a coordenação dos "agitadores" nos dois países e a aparente aliança entre apoiantes de Trump e Bolsonaro. "Como legisladores no Brasil e nos Estados Unidos, estamos unidos contra os esforços de agentes autoritários e anti-democráticos de extrema-direita para subverter resultados eleitorais legítimos e derrubar as nossas democracias", lê-se no comunicado..Para o cientista político Jeffrey Cummins, as ligações entre o 6 e o 8 de janeiro são óbvias, embora esteja por determinar se houve algum tipo de coordenação entre operacionais nos EUA e Brasil.."Parece muito claro que isto foi modelado à imagem do ataque de 6 de janeiro ao Capitólio, mas com algumas exceções", disse o analista ao DN. "A similitude é que parece ser mais comum para derrotados em eleições tentarem interromper a democracia", algo que aconteceu tanto com apoiantes de Trump como de Bolsonaro.."Por outro lado, não é claro qual foi o propósito do ataque no Brasil, uma vez que o governo e as instituições não estavam em sessão da mesma forma que nos Estados Unidos", frisou. "Não estavam a contar os votos no presidente ou a executar esse ato oficial. Pareceu mais uma demonstração de insatisfação entre os apoiantes de Bolsonaro"..A outra semelhança com o ataque de 6 de janeiro, notou, é que o espírito insurrecionista foi alimentado por desinformação sobre os resultados da eleição, clamando que Bolsonaro não perdeu realmente. Mais que hashtags e invectivas de agentes do caos como Steve Bannon, "houve um movimento ao nível das bases que se dispuseram a acreditar na desinformação", sublinhou..O professor Everett Vieira III, especializado em política na América Latina, também apontou para as semelhanças entre os ataques. "Na superfície, pareceu muito similar à insurreição a 6 de janeiro", disse. "Desde o momento em que aconteceu haver um presidente de extrema-direita que acha que a eleição foi roubada.".No entanto, o especialista indicou que há duas grandes diferenças. "Uma é que Trump encorajou o ataque e Bolsonaro não", considerou, referindo que "embora Bolsonaro tenha dito que não acreditava nos resultados eleitorais, também não pediu aos seus apoiantes que se amotinassem." O ex-presidente viajou para a Florida e o poder foi transferido de forma pacífica, "ao passo que Trump estava em D.C. a pedir aos seus apoiantes que recuperassem o controlo do governo.".A outra grande diferença "é que no Brasil houve dúvidas quanto ao exército", disse Vieira, considerando que "Lula tem de ser cuidadoso na "purga" dos apoiantes de Bolsonaro das fileiras militares porque isso pode levar a algumas mini-insurreições.".O argumento do cientista político baseia-se no histórico de ditadura militar no Brasil e inclui o facto de Bolsonaro ter liderado um governo que teve alguns militares..O especialista referiu que as imagens da invasão o fizeram recuar até ao século XX, quando o Peru foi controlado por uma ditadura militar (entre 1968 e 1980) e depois houve receios de dar demasiado poder ao exército.."O ataque a 8 de janeiro pareceu-me mais similar ao Peru que aos EUA porque Lula teve de ser muito cuidadoso com a forma como lidou com os manifestantes", indicou.."Esta é uma perspetiva de quem vê do lado de fora, mas levanta-se a questão de saber se o exército brasileiro está 100% institucionalizado, de tal forma que não nos passaria pela cabeça que pudesse liderar um golpe", ponderou o analista..Jeffrey Cummins expressou maior otimismo em relação à solidez das instituições democráticas no Brasil.."Nalguns dos países maiores e melhor estabelecidos, e incluo aqui o Brasil, é extremamente difícil organizar um golpe de Estado e tomar o governo", referiu. "Mesmo que os invasores tivessem sido mais bem sucedidos a 6 de janeiro, não teriam conseguido derrubar o governo e Trump não teria sido colocado no poder", exemplificou. "Nestes países mais bem estabelecidos, com instituições de longa data, podem tentar mas não vai funcionar. Isto funciona em países mais pequenos que ainda não têm instituições tão fortes.".Será provável que cenas como estas se repitam noutros países insuspeitos? Os analistas acham que sim. Everett Vieira acredita que "podemos ver mais eventos destes", uma vez que os Estados Unidos "dão um exemplo ao mundo", para o bem e para o mal. Vieira referiu que gostaria de ver melhor cobertura destes eventos, considerando que os meios de comunicação nos Estados Unidos "fazem um trabalho medíocre" a cobrir países como o Brasil..Jeffrey Cummins também considera que este tipo de ataques poderá tornar-se um pouco mais comum, por causa da disseminação da desinformação. "É tão fácil fazer as pessoas pensar que um resultado não aconteceu que isso está a suceder mais.".No entanto, o especialista acredita que este efeito dominó é temporário. "Prevejo mais eventos como este, mas penso que a certa altura vão desaparecer porque serão vistos como ineficazes", afirmou. "Em ambos os ataques o resultado não foi alterado. No caso do Brasil, nem sequer é claro qual foi o propósito, para lá de registar descontentamento.".dnot@dn.pt