Shawn Littleton: As Lajes são a base estrategicamente mais significativa a que os EUA têm acesso na Europa

Numa cerimónia na Base das Lajes, promovida pela GlexSummit para homenagear o mítico piloto Joe Kittinger, surgiu a oportunidade de conversar com o comandante americano, o coronel Brian L. Hardeman, e o número dois, o tenente-coronel Shawn Littleton. Este último, autor de ensaios sobre a importância militar dos Açores, aceitou o desafio desta entrevista ao DN, sublinhando serem os seus pontos de vista "e não refletirem a política oficial ou a posição da Força Aérea dos EUA, do Departamento de Defesa ou do Governo dos EUA".
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A guerra na Ucrânia afeta de alguma maneira o valor estratégico das Lajes?
Localizações como as Lajes desempenham um papel fundamental para garantir que a América ainda possa projetar poder numa escala relevante para tranquilizar aliados e deter inimigos. Decididamente, a guerra na Ucrânia respondeu à questão de saber se as nações do mundo livre tinham ou não postura militar e credibilidade para deter a agressão russa. Isso destacou alguns dos benefícios naturais das Lajes como uma base de alta capacidade de desempenho fora do alcance do adversário.

O seu ensaio "The Strategic Significance of the Azores" ["O Significado Estratégico dos Açores"] fala no papel histórico das Lajes, especialmente durante a Guerra Fria. O apoio americano a Israel durante a Guerra do Yom Kippur foi o momento estratégico mais importante das Lajes?
É difícil apontar um "momento mais significativo" para as Lajes. Garantir, ou pelo menos acelerar, a vitória na Europa durante a Segunda Guerra Mundial ou salvar Israel e inverter a lealdade do Egito na Guerra Fria durante a OPERAÇÃO NICKELGRASS na Guerra de 1973 foram provavelmente alguns dos resultados globais mais significativos que dependiam da utilização de Lajes. No entanto, o momento mais significativo para a própria base pode ter sido a preparação para a OPERAÇÃO TEMPESTADE NO DESERTO de 1991 no Iraque. As Lajes estavam apinhadas de aviões e pessoal, numa altura em que o nosso adversário não podia desafiar o movimento de forças através do Atlântico nem ameaçar credivelmente as bases próximas do Iraque. O facto de a base das Lajes ter sido tão importante num conflito logisticamente permissivo sugere que num conflito de maior intensidade com um adversário mais capaz, as Lajes desempenhariam um papel ainda mais crucial.

Historicamente, quem é o maior responsável nos Estados Unidos pela criação da base das Lajes?
São muitas e fascinantes as histórias do lado americano que contribuíram para a nossa chegada às Lajes em 1943 e para a nossa presença contínua na ilha desde então. De uma forma ou de outra, a América estava determinada a obter acesso aos Açores durante a Segunda Guerra Mundial, o que até incluía um plano, a OPERAÇÃO ALACRITY, para deixar os Açores, à força, sob custódia protetora. Devido ao Tratado de Amizade Perpétua entre Portugal e Inglaterra, isso poderia ter, inconvenientemente, posto os EUA e o Reino Unido em guerra entre si. Felizmente, a diplomacia prevaleceu, e isso deve-se, sem dúvida, a George Kennan, o encarregado de negócios da Embaixada Americana em Lisboa. Ele teve a difícil tarefa de negociar com o governo fascista de Salazar para que se posicionasse contra os governos fascistas da Alemanha e de Itália, enquanto desobedecia diretamente aos seus superiores e tentava convencer os militares americanos a não invadir os Açores. Devido aos seus esforços, Kennan foi chamado de volta a Washington DC, repreendido e demitido. Percebendo que não tinha nada a perder, Kennan conseguiu um encontro com o presidente Roosevelt, que tinha uma história pessoal com os Açores e um apreço significativo pela região. Roosevelt escreveu à mão um bilhete para Kennan levar a Salazar. Ao regressar a Lisboa, Kennan acabou por ter sucesso nas negociações, mas mesmo assim foi despedido. Ele foi para Moscovo, onde em 1946 escreveu o "Long Telegram", que articulava a Estratégia de Contenção que moldou a Guerra Fria e continua a afetar as relações modernas.

Depois da investigação sobre a história das Lajes que fez para o seu ensaio, o "Significado Estratégico" foi uma surpresa ou era uma coisa óbvia, em muitos aspetos, para qualquer membro das Forças Armadas americanas?
Na verdade, a importância estratégica dos Açores surpreendeu-me. Há um reconhecimento intuitivo de que as ilhas oferecem uma enorme vantagem geográfica, mas desconhecia o papel descomunal que os Açores desempenharam no desenrolar dos acontecimentos mundiais ao longo dos últimos 600 anos. O aprofundamento do tema revelou uma flutuação na importância das ilhas em função da interação entre a mudança tecnológica e a geopolítica. A competição entre as nações impulsionou mudanças em áreas como as tecnologias da comunicação e de transporte. Essas mudanças vieram com riscos iniciais antes do amadurecimento das tecnologias. Os Açores serviram como uma plataforma de redução de riscos para ultrapassar os problemas colocados pela distância, de que são exemplos a proliferação de cabos submarinos ou a transição das embarcações à vela para as de combustão, onde um ponto intermédio seguro era crucial. O amadurecimento das tecnologias possibilitou uma explosão na transmissão de valor através do Atlântico na forma de informações e mercadorias. Estas tecnologias maduras deixaram de necessitar dos Açores como ponto de escala. Assim, embora a utilização comercial das ilhas tenha diminuído, a utilidade militar aumentou significativamente. Os Açores oferecem um ponto de partida para ameaçar ou defender rotas comerciais de tráfego pesado, e o seu isolamento significa que isso vem com uma exclusividade e um equilíbrio de facilidade que imita pontos de estrangulamento globais como os estreitos de Malaca ou Gibraltar.

A modernização da tecnologia de voo é uma das justificações para o papel menos importante das Lajes nas últimas décadas, mas na sua opinião as novas tecnologias vão de alguma forma dar uma nova oportunidade às Lajes. Pode desenvolver mais essa ideia?
Eu diria que a modernização da tecnologia da aviação se encaixa no padrão que estudei, onde o amadurecimento de uma tecnologia causa uma diminuição da necessidade de escalas comerciais nos Açores, mas aumenta o volume de tráfego em trânsito nas proximidades, o que significa que uma presença militar em bases como a das Lajes ainda é incrivelmente relevante, porque permite defender ou ameaçar linhas vitais de comunicação. A possibilidade de ressurgimento da utilização comercial provavelmente seguirá o padrão histórico de novas tecnologias que dependem dos Açores para redução de risco. Basta olhar para as tendências tecnológicas para adivinhar quais serão as prováveis transições. Esta poderia ser uma transição prática para navios elétricos, que exigiriam manutenção e eletricidade em rota, ou tecnologias mais fantasiosas, como um hyperloop transatlântico que utilizaria os Açores como um centro logístico e de apoio.

Podemos considerar, ainda hoje, as Lajes como uma das bases americanas mais estratégicas do mundo?
Se olharmos para os próximos 20 a 50 anos, eu honestamente consideraria as Lajes a base estrategicamente mais significativa a que os EUA têm acesso na Europa. Nas próximas décadas, a expansão da República Popular da China provavelmente verá uma presença deste país nas costas sul-americana e africana do Atlântico. A RPC afirmou publicamente as suas aspirações de operar no Atlântico e possui taxas de construção de navios que tornam isso uma possibilidade real. É improvável que a intensificação da competição entre os EUA e a China avance intencionalmente para um conflito com os EUA a atacarem preventivamente ou a China a atacar prematuramente, de modo que as próximas décadas pressagiam um período de postura de vantagem global. A capacidade de exercer o controlo no meio do Atlântico a partir dos Açores exige apenas investimentos modestos, mas obriga a investimentos dramaticamente desproporcionados da China nas regiões periféricas do Atlântico. Além dessa visão estritamente realista, há também o facto de a estratégia dos Estados Unidos como democracia ser a de operar como membro de uma constelação de alianças e parcerias com nações afins para interesses de segurança partilhados. O valor diplomático de garantir que o acesso seguro e previsível a um bem comum global como o Atlântico permaneça aberto a todos ajuda a manter a Ordem Baseada em Regras Internacionais em que a América e Portugal cooperam. Devido à simples realidade da geografia, essas são vantagens que os EUA não podem replicar operando de outro lugar. As Lajes são essenciais.

Qual foi o impacto do seu ensaio nas Lajes? Teve alguma reação positiva nos Açores?
Seria difícil atribuir quaisquer mudanças concretas nas Lajes especificamente ao meu ensaio ("The Strategic Significance of the Azores" - abril de 2022) ou ao artigo de jornal subsequente ("Atlantis Rising: Re-Posturing the Azores for the Era of Strategic Competition" ["Ascensão Atlântica: Reposicionar os Açores para a Era da Competição Estratégica"] - março de 2023 ) . Acho que contribuíram para iluminar o espaço de decisão para discussões sérias sobre qual deveria ser o futuro da presença americana nas Lajes. Estas questões surgem numa altura em que concluímos oficialmente os objetivos de racionalização nas Lajes em 2022, enquanto o ambiente estratégico global mudou dramaticamente com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Portanto, há abertura e urgência nas discussões sobre o que fazer para o futuro. Eu gostaria de pensar que o meu trabalho forneceu às pessoas informações básicas úteis para discussões mais significativas. A reação nos Açores tem sido quase inteiramente positiva. Um dos jornais locais publicou um artigo e uma das estações de televisão locais apresentou uma peça sobre o meu trabalho. Foi muito emocionante ver o esforço empregado na escrita ajudar a criar um diálogo público produtivo. Um dos destaques da minha digressão nas Lajes foi ser convidado para fazer uma palestra pela Sociedade Histórica local em Angra. Eu estava muito animado por interagir com pessoas que partilhavam a minha paixão pelo assunto.

Como é que descreve a sua atual experiência nas Lajes? A sua opinião sobre a base é diferente depois desta experiência de cá estar?
Escrevi "O Significado Estratégico dos Açores" antes mesmo de visitar as ilhas. O trabalho incidiu sobretudo sobre a importância dos Açores numa perspetiva histórica e o que estas lições nos podem levar a esperar do futuro. Na verdade, estar estacionado nas Lajes trouxe um foco e uma clareza que me motivou a escrever "Atlantis Rising: Re-Posturing the Azores for the Era of Strategic Competition", para adicionar alguma especificidade ao que a América deveria fazer concretamente como membro da aliança para promover objetivos de segurança partilhados.

Os EUA e Portugal são membros fundadores da NATO. Como é a cooperação militar entre americanos e portugueses nas Lajes?
A cooperação militar entre os EUA e Portugal nas Lajes é um excelente exemplo daquilo a que gosto de chamar "as linhas da frente da diplomacia". Embora os chefes de Estado possam tomar as decisões de assinar tratados, isso é apenas o esqueleto de uma aliança. São pessoas como o pessoal da América e de Portugal nas Lajes que tornam os relacionamentos significativos e fornecem o tecido conjuntivo e o músculo que traz vida e relevância ao relacionamento. Acho que nos damos incrivelmente bem juntos - pequenas diferenças nos processos e procedimentos são simplesmente oportunidades para praticar e melhorar a colaboração. Estamos unidos por interesses e aspirações comuns e, o mais importante, a confiança. Recentemente, ouvi uma definição de confiança que a define como "tornar algo que você valoriza vulnerável às ações dos outros". Eu diria que isso ilustra bem o nível de confiança nas Lajes. Nenhuma das Forças Aéreas está a realizar uma operação paralela onde poderíamos sobreviver uma sem a outra, estamos tão fortemente integrados para facilitar a otimização da missão que nenhuma unidade poderia ter sucesso sozinha.

Como é que se sente como americano a viver em Portugal e em contacto com a cultura açoriana?
Adoramos. Pude visitar todas as nove ilhas, aprender muito sobre o povo, apreciar (talvez demais) a comida, ganhar alguma proficiência básica em português e experimentar uma cultura e um modo de vida que nos faz pensar seriamente em nos aposentarmos nas ilhas. Como bónus, encontrámos um cãozinho açoriano caído, quase morto, à beira da estrada numa noite fria e tempestuosa de inverno... o veterinário conseguiu curá-lo, e agora temos um novo membro da família que vai regressar para os EUA connosco!

O DN viajou a convite da GlexSummit

leonidio.ferreira@dn.pt

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