“As divisões políticas são um dos aspetos mais dinâmicos e mutáveis da Revolução Francesa”
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

“As divisões políticas são um dos aspetos mais dinâmicos e mutáveis da Revolução Francesa”

“A Revolução Francesa e os Direitos do Homem: Silêncios e Contradições” abre, hoje às 18h, o ciclo de conferências online, promovido pela Academia das Ciências de Lisboa. O momento inicial cabe a Daniel Alves, Prof. Auxiliar do Dept. de História e investigador do Inst. de História Contemporânea da NOVA-FCSH.
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Em dezembro de 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas adotava e proclamava a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Decorridos 75 anos após a publicação do documento composto por 30 artigos, a Academia das Ciências de Lisboa (ACL), através do Instituto de Altos Estudos, inicia um ciclo de conferências sobre Diversidade Cultural, Desenvolvimento e Direitos Humanos. O debate, aberto a toda a sociedade e com acesso livre, online, via plataforma Zoom, visa “promover uma reflexão ampla e abrangente sobre o tema dos direitos humanos”, sublinha a instituição sediada na capital.

Até maio deste ano, sempre às quartas-feiras (18h00-19h00), “são interpeladas várias áreas do conhecimento como História, Filosofia, Direito, Literatura e Medicina, de modo a propiciar um diálogo enriquecedor e estimulante. Abordar-se-ão as origens históricas dos direitos humanos, seus fundamentos filosóficos, bases legais, expressões literárias, bem como questões emergentes de saúde e de cidadania que passam pela qualidade da educação e da formação”, adianta a ACL. Ainda de acordo com a mesma fonte, este ciclo “pretende contribuir para a apropriação pela sociedade de um tema fundamental, promovendo a diversidade cultural e o conhecimento dos princípios e práticas de uma cidadania comprometida com os direitos de toda a família humana”, conclui a ACL.

À conferência na Academia das Ciências de Lisboa leva uma questão para reflexão: “A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada em agosto de 1789 era um texto de muitos compromissos, algumas contradições e outras tantas omissões ou silêncios”. Antes de nos determos nas contradições, omissões e silêncios, gostaria de o ouvir a propósito dos compromissos. Um compromisso subentende um acordo mesmo quando há visões opostas e tensões. Nesse sentido, a que compromissos se refere?
O primeiro compromisso resultou do esforço de conciliar 35 textos diferentes que foram presentes à Assembleia Nacional entre junho e agosto de 1789. Mas foram necessários compromissos igualmente para gerar um consenso mínimo entre grupos sociais e políticos que estavam em oposição mesmo antes do início dos Estados Gerais, mais tarde Assembleia Nacional, reunidos em maio desse ano. Uma grande maioria dos representantes da nobreza e pouco mais de metade dos representantes do clero opunham-se inicialmente às reivindicações dos membros do Terceiro Estado e só a tomada da Bastilha em 14 de julho permitiu desbloquear alguma resistência. Mesmo dentro do Terceiro Estado existiam grupos que pretendiam manter as prerrogativas do rei e outros que consideravam que Luís XVI deveria ter os seus poderes cerceados. Havia ainda debate sobre o papel da religião e da liberdade de expressão, entre outras questões. Tendo tudo isto em conta, o texto final foi o mínimo denominador comum às diferentes sensibilidades políticas e sociais em presença.

No seguimento da sua citação: A que contradições alude?
Talvez se possa falar mais corretamente em limites ou hesitações. Se é certo que a Declaração apenas refere “direitos”, ao contrário da versão de 1795 que também enumera “deveres”, não deixa de impor limites. Por exemplo, se por um lado é reconhecido aos cidadãos o direito natural de resistência à opressão [artigo 2.º], por outro é referida como crime a resistência à lei votada pelos seus representantes [artigo 7.º]. No caso da liberdade, outro dos direitos naturais, a mesma é limitada pela necessidade de proteção e segurança dos indivíduos [artigos 4.º e 5.º] e pela necessidade de proteger a ordem [artigos 5.º, 10.º e 11.º]. Estavam ainda ausentes da declaração os direitos sociais, apesar de terem sido inscritos em cerca de metade dos textos inicialmente propostos para o debate. Entre as hesitações que se percebem na declaração está o caso da liberdade de expressão, para a qual se definem também certos limites, a estabelecer pela lei, para evitar “abusos” que se pressupunha que poderiam acontecer [artigo 11.º]. Mesmo que se afirmasse que ninguém poderia ser molestado pelas suas opiniões, o certo é que essas não poderiam colidir com a manutenção da ordem pública [artigo 10.º].

Quando nos fala em “omissões e silêncios” refere-se, especificamente, à questão do papel da mulher na referida Declaração e à sensível questão da escravidão que se manteve legitimadas nas colónias francesas? No fundo a existência dos chamados cidadãos ativos e passivos.
O papel político das mulheres e a escravatura, ou até os direitos dos homens negros livres, são algumas dessas omissões ou silêncios, sim, mas também a questão religiosa ou da cidadania de grupos religiosos minoritários ficou ausente da Declaração. Contudo, todas estas questões eram já debatidas na sociedade francesa, em alguns casos há várias décadas pelos Iluministas, tendo estado presentes nos debates públicos pré-revolucionário, entre 1787 e 1789. Entre outros, Olympe de Gouges publicou panfletos defendendo um papel mais ativo para as mulheres. Em 1788, foi fundada a Sociedade dos Amigos dos Negros que defendia, com certas condições, o fim da escravatura. Em 1787 já tinha sido reconhecido o direito de cidadania aos protestantes, mas não aos judeus. Tudo isto estava presente quando se iniciou o debate sobre a Declaração em junho de 1789. Mas há outros dois grandes silêncios: nada é dito sobre o rei e o seu papel; nada é dito sobre a Igreja Católica, religião oficial da França à época.

Ainda a propósito da questão dos direitos das mulheres, não resisto em trazer à conversa uma outra declaração redigida por Marie Gouze em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã ("Mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos"). Que destino teve este documento e a sua autora?
Marie Gouze adotou o nome público de Olympe de Gouges, tendo sido guilhotinada pelos jacobinos em novembro de 1793 com a alegação de traição e "excesso de imaginação", segundo a historiadora Joan Scott. No fundo, mesmo para homens políticos profundamente comprometidos com ideias progressistas, a noção de que as mulheres deveriam ser consideradas como iguais e com direitos políticos similares aos dos homens era um excesso que não estavam preparados para reconhecer no século XVIII. Além disso, como refere a mesma historiadora, de Gouges imaginou ou sonhou o papel da mulher como estando acima das diferenças entre homens e mulheres, mas ao mesmo tempo compreendendo em si características de ambos. Além de ter redigido a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de Gouges foi dramaturga e panfletária. A sua Declaração, publicada em setembro de 1791, foi recebida com muita cautela, pois a maioria dos políticos da época ainda não aceitava ver a mulher com direitos políticos iguais aos dos homens. Para os mais radicais, a Declaração foi vista com suspeita por de Gouges a ter dedicado à rainha Maria Antonieta. Em 1793, num dos seus panfletos, denunciou ainda o que considerava serem os crimes de Robespierre, à época figura destacada dos Jacobinos no poder. Antes tinha defendido o rei Luís XVI durante o seu julgamento. Estas posições, antagónicas ao jacobinismo, terão contribuído para a sua posterior prisão e execução.

Em momento anterior sublinhou que “a Constituição aprovada em 1791 se apresentava menos avançada do que o texto da Declaração”, não obstante esta lhe servir de preâmbulo. O que se perdeu de um para o outro documento?
Talvez não se possa dizer que se perdeu algo. Entre a Declaração de 1789 e a Constituição de Setembro de 1791 foi preciso tornar reais, concretos, muitos dos direitos abstratamente enunciados no primeiro documento. A liberdade de expressão, por exemplo, foi matizada e circunscrita na Constituição. O papel do rei foi definido, sendo-lhe concedido o direito de veto sobre as leis da assembleia, por exemplo. Os cidadãos que tinham direitos iguais, foram categorizados e divididos em termos políticos entre cidadãos ativos, que podiam votar, e passivos, que não tinham esse direito. São alguns exemplos.

A Sociedade dos Amigos dos Direitos do Homem e do Cidadão (Clube dos Cordeliers) não incluiu na sua designação uma referência à Constituição. Há uma leitura que possamos retirar desta omissão, nomeadamente as divisões políticas que o documento originou?
As divisões políticas são um dos aspetos mais dinâmicos e mutáveis da Revolução Francesa, evoluindo constantemente entre 1789 e 1795. Cada nova fase da Revolução foi acompanhada, por vezes no mesmo ano, por mudanças de campo político muito significativas. Aqueles que num determinado momento eram considerados mais radicais ou avançados, no momento seguinte poderiam ser ultrapassados e passavam a ser vistos como moderados. É o que acontece com os clubes políticos, sendo o dos Cordeliers um desses casos. Em 1790, ao contrário do Clube dos Jacobinos e, em 1791, do Clube dos Feuillants, os Cordeliers ou Franciscanos não incluíram no nome oficial do clube a palavra “Constituição” precisamente por considerarem que os debates do texto constitucional indicavam cedências moderadas. Contudo, em 1794, quando os Jacobinos estão no poder, o Clube dos Jacobinos torna-se o clube político mais radical, sendo alguns membros dos Cordeliers, como Danton ou Camille Desmoulins, guilhotinados precisamente sob a acusação de moderação. Tudo era muito volátil neste período, mas inicialmente, entre 1789 e 1791, ser adepto da Declaração era pertencer ao lado mais avançado da Revolução.

Não obstante o texto de agosto de 1789 se ter tornado referência para as instituições francesas, na realidade há outras duas declarações dos direitos do homem, a de 1793 e a de 1795. De que forma estes documentos refletem a evolução política da Revolução Francesa?
Efetivamente, podemos associar cada uma das declarações, que correspondem aos preâmbulos de cada uma das constituições (1791, 1793 e 1795), como sendo produto de fases distintas da Revolução. A de 1789, com as suas inovações e avanços, não deixa de ser vista como relativamente moderada quando comparada com a de 1793. Esta reforçava os direitos, dando um maior destaque à questão da igualdade e referenciando o que poderíamos chamar de direitos sociais, como a felicidade comum, a educação, a assistência ou o direito à vida. Era o reflexo de um momento político mais radicalizado, vivido já depois de abolida a monarquia, em 1792, e morto o rei, em janeiro de 1793. Por sua vez, em 1795, pretendendo por fim aos excessos revolucionários do período do “Terror”, os deputados votam uma nova declaração que não só enunciava os direitos, mas também os deveres dos cidadãos.

Acesso à conferência: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/93023760525
ID Reunião: 93023760525

Direitos das Minorias na próxima conferência

O ciclo de conferências Diversidade Cultural, Desenvolvimento e Direitos Humanos prossegue a 10 de abril (18h00) com o tema “Diversidade Cultural e Direitos das Minorias no Direito Internacional dos Direitos humanos: Teoria e Prática”, com a presença de Patrícia Jerónimo, Professora Associada na Escola de Direito da Universidade do Minho.

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