Diz Angela Merkel na autobiografia Liberdade referindo-se às medidas de austeridade impostas em 2011 a Portugal, Espanha, Grécia e Itália que a sua “reputação nestes países estava na lama, em particular na Grécia”. Admite a antiga chanceler alemã que “as pessoas com baixos rendimentos sofreram particularmente com as reformas”, mas reafirma a convicção de que agiu bem ao não prescindir das “exigências que visavam melhorar a disciplina orçamental e a competitividade dos países em dificuldades”..Lançado a nível mundial, com esta edição portuguesa a sair em simultâneo com a original alemã, Liberdade é um regresso à ribalta da mulher que mais marcou a história europeia do início do século XXI, mas que nos últimos três anos se manteve discreta, mesmo que aceitasse, por exemplo, vir a Lisboa presidir ao Prémio Gulbenkian para a Humanidade (onde a vi ser aplaudida). Um regresso que coincide com a queda do sucessor, o chanceler social-democrata Olaf Scholz, e eleições antecipadas em fevereiro..Houve na terça-feira longuíssimas filas na livraria Dussmann, em Berlim, para uma assinatura da autora, e uma conversa em torno da obra no Deustche Theater foi um grande evento cultural. Quatro vezes eleita chanceler, Merkel liderou durante 16 anos a Alemanha, e a Europa, numa sucessão de crises, fosse a económica, a migratória, a política ou a sanitária, e a sua saída de cena, em 2021, aconteceu meses antes de outra crise, desta vez militar, com a invasão russa da Ucrânia. Hoje, muitas das suas decisões são questionadas, desde, claro, as tais medidas de austeridade que a Troika nos impôs no Governo de Pedro Passos Coelho à excessiva dependência da Rússia em matéria energética, passando pela abertura de portas a um milhão de refugiados sírios em 2015..LiberdadeAngela MerkelObjectiva 29,95688 páginas.Esses pontos quentes do livro foram, naturalmente, escrutinados nas entrevistas que tem dado, nomeadamente a relação com Vladimir Putin e a presença hoje de tropas russas na Ucrânia. À BBC, por exemplo, sobre a crítica que lhe faz Volodymyr Zelensky de ter errado ao, na Cimeira da NATO de 2008, recusar a entrada da Ucrânia na Aliança Atlântica, disse: “teríamos visto um conflito militar ainda mais cedo. Era completamente claro para mim que o presidente Putin não teria ficado de braços cruzados a ver a Ucrânia aderir à NATO. E naquela época, a Ucrânia como país certamente não estaria tão preparada como estava em fevereiro de 2022.” Sobre o líder russo, o livro não esquece, a par das tensões políticas entre Berlim e Moscovo, o episódio do labrador levado por Putin para uma reunião com a alemã, sabendo do medo desta de cães, mas também menciona um bife de urso-pardo que a chanceler chegou a comer numa visita à Rússia..Merkel, nestas memórias, fala obviamente de Donald Trump, de novo presidente americano, com quem teve de lidar aquando do primeiro mandato dele. Descreve-o como “alguém que julgava tudo da perspetiva do empresário do setor imobiliário que foi antes de entrar na política” e, portanto, figura com quem “não seria possível trabalhar em conjunto com vista a um mundo interligado”. A antiga chanceler sublinha o “rude golpe” que foi o telefonema de Trump a comunicar que os Estados Unidos iam desistir do Acordo de Paris sobre o Clima. E não deixa de ser relevante que, mesmo sabendo que o livro sairia já depois das eleições de 5 de novembro, Merkel ter escrito desejar “do fundo do coração que Kamala Harris, que conheci durante a minha última visita a Washington enquanto chanceler, em julho de 2021, faça frente ao seu adversário durante a campanha eleitoral e seja eleita presidente”. .Nascida em 1954 em Hamburgo, Angela Dorothea Kasner acompanhou ainda criança a família quando esta se mudou para o que era então a RDA. E foi na Alemanha comunista que cresceu, até ser uma cientista que depois da queda do Muro de Berlim e da reunificação alemã se tornou protegida de Helmut Kohl, foi ministra de várias pastas e finalmente líder dos democratas-cristãos e chefe do Governo de Berlim. .Estive em reportagem para o DN na Alemanha em setembro de 2005, quando ninguém previa a vitória de Merkel (usa o apelido do primeiro marido, Ulrich, mas é casada com Joachim Sauer). Diziam faltar-lhe carisma, fazendo fraca figura perante o chanceler social-democrata Gerhard Schroeder e não tendo comparação com o patrono, Kohl, o chanceler da reunificação. Já sabemos que se enganaram. Nunca a Europa teve uma líder tão forte, talvez só a dama de ferro, a britânica Margaret Thatcher, mas isso foi ainda no século XX e num país que sempre esteve com um pé na UE e outro fora, como se viu depois com o Brexit. Fui a Templin, não longe de Berlim, mas já no Brandemburgo, a aldeia onde Merkel cresceu. O livro descreve assim a vista, então, da casa dos pais: “avistávamos os pinheiros e observávamos as copas a ondular suavemente ao sabor do vento. Por entre as árvores, víamos um caminho que descia ligeiramente até desembocar num prado através do qual corria o canal entre o lago de Templin e o lado de Roddelin. Deveríamos ir até à nascente lá adiante no prado? Pegar nas bicicletas e ir tomar banho ao lago de Roddelin? Apanhar mirtilos nos bosques que rodeavam Templin? As possibilidades pareciam-nos ilimitadas”.