Antes do voto antecipado, um eleitor observa os boletins onde figuram 52 partidos.
Antes do voto antecipado, um eleitor observa os boletins onde figuram 52 partidos.MICHELE SPATARI/AFP

ANC arrisca perder maioria. Estagnação traz incerteza eleitoral

Pela primeira vez em 30 anos o desfecho do escrutínio pode não dar maioria absoluta ao Congresso Nacional Africano (ANC), mas o presidente Cyril Ramaphosa não terá reeleição em risco.
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O partido de Nelson Mandela combateu o regime racista de apartheid e protagonizou uma transição feliz para a democracia, onde prometeu construir uma vida melhor para todos. Passados 30 anos a esperança deu lugar à desilusão. Embora a vitória nas eleições nacionais e provinciais desta quarta-feira não esteja em causa, os 27,8 milhões de eleitores poderão passar a fatura ao ANC e escolher entre outros 51 partidos em número suficiente ao ponto de retirar a maioria absoluta.

São muitos e de monta os problemas de África do Sul. A desigualdade, herdada do anterior regime, mantém-se nos rendimentos (que o país lidera), mas também no acesso à educação, à habitação ou aos serviços essenciais. No geral, tendo em conta o clima e uma gestão questionável das infraestruturas, os cortes de água e de eletricidade - que depende de centrais a carvão - tornaram-se comuns. O banco central sul-africano estima que, graças à interrupção de eletricidade, houve em 2023 uma perda diária de 45 milhões de euros.

A economia do país mais industrializado de África - que fechou 2023 à beira da recessão - debate-se com outros desafios, da baixa produtividade à corrupção e ao desemprego. Os números oficiais dizem que um em cada três sul-africanos não tem emprego, situação que se agrava no grupo etário mais novo: aí chega aos 45%. Com os indicadores socioeconómicos no vermelho, os índices de criminalidade violenta aumentaram na última década. Com um agravamento de mais de 60% de homicídios em 10 anos, em cada 19 minutos um sul-africano é vítima de assassínio.

No último congresso do ANC, um documento alertava para o facto de bandos instalados e redes de extorsão terem procurado estabelecer formas criminalizadas de governação. Desde 2019 registaram-se 166 assassínios políticos, segundo dados da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado. Estes crimes estão por norma ligados à obtenção de contratos públicos ou para chegar ao controlo dos partidos, tudo ao nível local.

É neste contexto que a África do Sul elege os 400 deputados e os representantes das assembleias das nove províncias. O ANC tem vindo a perder terreno em cada eleição, que se realiza em cada cinco anos. Em 2019, caiu 4,6 pontos percentuais em relação a 2014, mas ainda assim foi a escolha de 57,5% dos eleitores. Caso não atinja a maioria absoluta, como indicam várias sondagens, pela primeira vez ao nível nacional vai ter de haver um acordo pós-eleitoral para garantir uma maioria parlamentar e a escolha do presidente. 

Na África do Sul, o chefe de Estado, que é também o líder do Executivo, é eleito pelos deputados no início da legislatura. É esperado que Cyril Ramaphosa, de 71 anos, seja reeleito para um segundo e último mandato. É tido como muito improvável que outro partido consiga impor outro candidato presidencial num acordo de governação.

Até ao dia de eleições, o ANC evitou pronunciar-se sobre os cenários de coligação. Na realidade, depende da percentagem obtida: se ficar perto dos 50% o mais certo será abordar pequenas formações partidárias. Um score   mais baixo obrigará o partido a fazer escolhas mais consequentes. À direita, a Aliança Democrática, o grande partido da oposição, cuja base eleitoral se encontra na população não negra, e maioritário na província do Cabo Ocidental, exige privatizações e desregulação da economia.

À esquerda, o partido do dissidente do ANC Julius Malema, Combatentes pela Liberdade Económica, defende nacionalizações e a expropriação de terras. Também nesta ala se encontra o novo partido do ex-presidente Jacob Zuma, MK. Apesar de o próprio não poder ser eleito por ter sido condenado a uma sentença de prisão superior a 12 meses - e de ter saído do poder após escândalos de corrupção -, deverá desviar muitos votos do ANC, em especial em Kwazulu-Natal. Mas dado o tom de confronto, não se descortina um acordo entre ANC e MK. 

cesar.avo@dn.pt

Nova força de Zuma tenta conquistar a fortaleza do seu antigo partido

Kwazulu-natal, a segunda província em população, pode ter um papel decisivo em retirar a maioria ao partido no poder desde o fim do apartheid.

Numa aldeia aninhada nas montanhas da província de Kwazulu-Natal, o novo partido do antigo presidente Jacob Zuma tem feito uma campanha incansável para conquistar os eleitores do seu antigo partido, o ANC. Na segunda-feira, em tendas montadas pelos dois partidos à porta de uma escola que serve de assembleia de voto, tocavam-se canções partidárias a dar as boas-vindas aos primeiros eleitores que esperavam influenciar.
Alguns, incluindo os idosos e os doentes, já puderam votar na segunda-feira, no que se espera ser a eleição mais renhida das últimas décadas.

O aparecimento do partido uMkhonto we Sizwe (MK) de Zuma aumentou a tensão em Kwazulu-Natal, um campo de batalha eleitoral famoso pela violência política. Em KwaXimba, uma zona rural pontilhada por cabanas de colmo nos arredores da cidade oriental de Durban, as vacas passeiam ao sol pelas ruas cobertas de cartazes de campanha dos partidos rivais. Muitos aqui reverenciam Zuma, de etnia zulu, que nasceu na província. “Há muito que precisamos de mudanças nas nossas vidas”, disse Thokozani Mthembu, coordenador local do MK em KwaXimba.

Algumas sondagens apontam para uma vitória do MK poderá ganhar em Kwazulu-Natal. Muitos habitantes de KwaXimba voltaram-se para o MK, lamentando a contínua escassez de água e eletricidade, que alguns culpam pela má gestão do ANC. A votação decorreu sem problemas em KwaXimba durante o dia, mas num ambiente tenso. Mthembu afirma que depois de Zuma, 82 anos, ter realizado um comício na aldeia, em janeiro, o partido recebeu ameaças de apoiantes do ANC. Foram também erradamente informados de que o MK iria retirar os subsídios sociais e a habitação gratuita, afirmou. O ANC nega qualquer irregularidade. 

Ao fundo da estrada da escola, as galinhas cacarejavam no quintal de Nicolas Ndlovu, de 66 anos, enquanto esperava que os funcionários eleitorais chegassem a sua casa e lhe permitissem votar antecipadamente.
Depois de ter lutado pelo ANC durante a luta anti-apartheid e de ter apoiado o partido toda a vida, Ndlovu diz que agora espera vê-lo na oposição, para que “talvez possam trabalhar mais e recuperar o poder”. O apelo de Zuma estende-se aos jovens: “O velho, por mais velho que seja, ainda valoriza a nossa contribuição e ainda permite que sejamos vencedores”, disse Nkazimula Makhanya, de 26 anos, desempregado, referindo-se a Zuma. 
DN/AFP

Kwazulu-natal, a segunda província em população, pode ter um papel decisivo em retirar a maioria ao partido no poder desde o fim do apartheid.

Numa aldeia aninhada nas montanhas da província de Kwazulu-Natal, o novo partido do antigo presidente Jacob Zuma tem feito uma campanha incansável para conquistar os eleitores do seu antigo partido, o ANC. Na segunda-feira, em tendas montadas pelos dois partidos à porta de uma escola que serve de assembleia de voto, tocavam-se canções partidárias a dar as boas-vindas aos primeiros eleitores que esperavam influenciar. Alguns, incluindo os idosos e os doentes, já puderam votar na segunda-feira, no que se espera ser a eleição mais renhida das últimas décadas.

O aparecimento do partido uMkhonto we Sizwe (MK) de Zuma aumentou a tensão em Kwazulu-Natal, um campo de batalha eleitoral famoso pela violência política. Em KwaXimba, uma zona rural pontilhada por cabanas de colmo nos arredores da cidade oriental de Durban, as vacas passeiam ao sol pelas ruas cobertas de cartazes de campanha dos partidos rivais. Muitos aqui reverenciam Zuma, de etnia zulu, que nasceu na província. “Há muito que precisamos de mudanças nas nossas vidas”, disse Thokozani Mthembu, coordenador local do MK em KwaXimba.

Algumas sondagens apontam para uma vitória do MK no Kwazulu-Natal. Muitos habitantes de KwaXimba voltaram-se para o MK, lamentando a contínua escassez de água e eletricidade, que alguns culpam pela má gestão do ANC. A votação decorreu sem problemas em KwaXimba durante o dia, mas num ambiente tenso. Mthembu afirma que depois de Zuma, de 82 anos, ter realizado um comício na aldeia, em janeiro, o partido recebeu ameaças de apoiantes do ANC. Foram também erradamente informados de que o MK iria retirar os subsídios sociais e a habitação gratuita, afirmou. O ANC nega qualquer irregularidade. 

Ao fundo da estrada da escola, as galinhas cacarejavam no quintal de Nicolas Ndlovu, de 66 anos, enquanto esperava que os funcionários eleitorais chegassem a sua casa e lhe permitissem votar antecipadamente. Depois de ter lutado pelo ANC durante a luta anti-apartheid e de ter apoiado o partido toda a vida, Ndlovu diz que agora espera vê-lo na oposição, para que “talvez possam trabalhar mais e recuperar o poder”. O apelo de Zuma estende-se aos jovens: “O velho, por mais velho que seja, ainda valoriza a nossa contribuição e ainda permite que sejamos vencedores”, disse Nkazimula Makhanya, de 26 anos, desempregado, referindo-se a Zuma. 
DN/AFP

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