Internacional
03 outubro 2022 às 21h40

Vitória amarga de Lula, derrota doce de Bolsonaro e tudo muito em aberto

Num Brasil dividido em duas metades geográficas, antigo presidente diz que só falta "jogar o prolongamento". Para o atual, "começa agora o segundo tempo". Tebet e Ciro tendem a apoiar o candidato de esquerda. O Congresso está ainda mais à direita.

João Almeida Moreira, São Paulo

Lula da Silva foi o candidato mais votado das eleições de domingo, dia 2, no Brasil, com 48,43% dos votos, mas falhou a vitória à primeira volta, o que deixou uma sensação de frustração na esquerda brasileira. Jair Bolsonaro, candidato de extrema-direita, obteve 43,20% dos votos, e, mesmo em desvantagem, pode comemorar ter obtido registo acima do previsto pelas principais sondagens. O primeiro chamou os resultados de "prolongamento". O segundo, mantendo a metáfora desportiva, falou em "início do segundo tempo". O prolongamento ou segundo tempo é dia 30 e o jogo começa agora.

"Durante toda esta campanha, estivemos à frente nas sondagens de opinião de todos os institutos e eu sempre achei que íamos ganhar estas eleições mas eu quero dizer para vocês que nós vamos, sim, ganhar estas eleições, isto para nós é apenas um prolongamento", disse Lula, do PT, no hotel em São Paulo onde acompanhou os resultados.

"Temos um segundo tempo pela frente, onde tudo passa a ser igual, o mesmo tempo para cada lado de propaganda na rádio e televisão, entendo que muitos votos foram pela condição do povo brasileiro, que sentiu o aumento dos produtos, entendo que há uma vontade de mudar mas há certas mudanças que podem vir para pior", afirmou, por sua vez, Bolsonaro, do PL, à saída do Palácio do Alvorada.

As votações de ambos, entretanto, foram notáveis: com mais de 57 milhões de votos, Lula teve o melhor desempenho da história de um candidato à primeira volta, batendo um recorde, de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), com 28 anos; e Bolsonaro conseguiu um resultado melhor ainda do que na primeira volta de há quatro anos, 51 milhões de votos agora contra os 49,3 milhões de então.

O candidato à reeleição, que aproveitou a conferência de imprensa improvisada à porta do Alvorada para desmoralizar os institutos de sondagem - "vencemos as mentiras do Datafolha [instituto que previra 51% a 37% para Lula]"-, falou em alianças para ampliar a base de apoio, citando Romeu Zema, do liberal Novo, reeleito governador de Minas Gerais à primeira volta e mais próximo, mas não ainda oficialmente aliado, de Bolsonaro.

Sobre alianças, Lula afirmou que a segunda volta é tempo "de aumentar o leque". "O que é importante é que a segunda volta seja a oportunidade de amadurecer as propostas e a conversa com a sociedade e de construir um leque de alianças, um leque de apoio, antes de ganhar".

Observadores acreditam que Fernando Henrique Cardoso, que escreveu uma nota na primeira volta, onde não nomeava Lula como destinatário do seu apoio, agora avalize a candidatura do antigo rival eleitoral sem ambiguidades.

Simone Tebet, do MDB, a terceira mais votada com 4,2%, garantiu que "tem lado" na segunda volta. "Não esperem de mim omissão, eu não vou acobardar-me", afirmou, dizendo que dá 48 horas aos partidos que apoiam a sua candidatura, entre os quais o PSDB de Cardoso, para tomarem posição. Ao que tudo indica, ela indicará voto em Lula na segunda volta.

Ciro Gomes, do PDT, quarto classificado com 3%, também pediu tempo antes de tomar uma decisão por estar "muito preocupado com o futuro do Brasil". O seu partido, de centro-esquerda, é um tradicional aliado do PT mas, em 2018, Ciro recusou apoiar declaradamente Fernando Haddad contra Bolsonaro na segunda volta das eleições ganhas por este último.

O sociólogo Celso Rocha de Barros, em artigo no jornal Folha de S. Paulo, escreveu que "o resultado da primeira volta mostrou que, embora Bolsonaro tenha um alto nível de rejeição, não houve um grande deslocamento ideológico desde a última eleição presidencial: a direita, e mesmo a direita radical, continuam muito fortes".

E alerta: "Não vai ser um mês tranquilo. O Brasil tem grandes possibilidades de ser pior nos próximos quatro anos por causa desta segunda volta agora: governadores eleitos pelo Brasil afora leiloarão o seu apoio ao candidato que prometer gastar mais dinheiro com eles".

"Lula ainda tem boas hipóteses de vencer, mas terá que se deslocar ainda mais para o centro enquanto preserva os seus eleitores pobres, agora a eleição vai decidir-se por pequenas transferências de votos e a importância das alianças casadas nos pleitos estaduais e na eleição para presidente será grande", conclui.

Com uma eleição apertada, teme-se o aumento de casos de violência em campanha, que já causaram mortes ao longo da primeira volta. Um levantamento feito pela UniRio indica que os casos de violência política cresceram 335% no Brasil nos últimos três anos. No primeiro semestre de 2022 foram identificados 214 episódios, contra 47 casos no mesmo período de 2019, ano em que o estudo, que contabiliza ameaças, atentados, homicídios, homicídios de familiares, sequestros e sequestros de familiares de lideranças políticas, começou.

Reinaldo Azevedo, colunista do UOL, detetou que o erro nas sondagens, que gerou uma votação para Bolsonaro superior ao esperado de cinco a seis pontos, se verificou na região Sudeste, onde se incluem os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, os três mais populosos do Brasil. "O que fez a diferença? Onde está a surpresa? O atual presidente obteve um resultado bem acima do que se previa na Região Sudeste. Uma nota à margem: no Nordeste, Lula superou, às vezes, marcas que já eram formidáveis, o que explica, diga-se, a boa vantagem dele, mas distante do que se previa".

Esse avanço de Bolsonaro no Sudeste está bem ilustrado nas corridas aos governos dos estados que compõem a região: em São Paulo, o candidato bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) superou Haddad, do PT, que liderava as sondagens, e ambos vão agora à segunda volta, também dia 30; em Minas Gerais, o citado Romeu Zema (Novo) e, no Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), aliado declarado do atual presidente, liquidaram as eleições já à primeira volta.

No poder legislativo, Bolsonaro e a direita têm muito mais a festejar do que Lula e a esquerda. "Elegemos as maiores bancadas da Câmara e do Senado, o que era a nossa maior prioridade neste primeiro momento", disse o atual presidente.

Na Câmara, o seu partido, PL, foi o mais bem sucedido de entre os 23 que compõem a nova assembleia, elegendo 99 deputados, mais 23 do que em 2018 (na ocasião, Bolsonaro concorreu pelo PSL). O registo é apenas o equivalente a 19,2% do total de 513 parlamentares mas, se contabilizarmos toda a direita, o número sobe a 273, mais de metade do parlamento. O PT, de Lula, elegeu 79 deputados, mais três do que em 2018, mas a esquerda, no total, ocupa meras 138 cadeiras.

No Senado, Bolsonaro conseguiu eleger 14 aliados, entre os quais o seu ex-vice Hamilton Mourão e os seus ex-ministros Damares Alves e o astronauta Marcos Pontes, além de outros aliados como o cantor gospel Magno Malta e o ex-ponta-de-lança Romário. Dos oito aliados de Lula eleitos, destaque para Omar Aziz, presidente da CPI da pandemia, e Flávio Dino, ex-governador do Maranhão que chegou a ser dado como presidenciável.

Nos governos estaduais, por outro lado, 15 estados elegeram os seus governadores já no domingo e 12 decidiram levar a disputa para dia 30, incluindo o referido estado de São Paulo mas também a Bahia, quarto maior colégio eleitoral do país.

dnot@dn.pt