Supremo reverte acesso ao aborto e abre guerra entre duas Américas

"A Constituição não faz referência ao aborto", foi o argumento usado pelos juízes para reverter um direito que vinha de 1973. Uma votação de 6-3, respeitando a divisão entre conservadores e liberais. "Um dia triste", afirmou o presidente Biden.
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Este é o dia pelo qual temos esperado. Vamos inaugurar uma nova cultura da vida nos EUA", afirmava uma exultante Gwen Charles, de 21 anos, diante do Supremo Tribunal dos EUA, em Washington. "É difícil imaginar viver num país que não respeita as mulheres como seres humanos e o seu direito a controlar os seus corpos", lamentava Jennifer Lockwood-Shabat, não muito longe, tentando engolir as lágrimas. Duas mulheres, duas reações à decisão do Supremo, a mais alta instituição judicial do país, de revogar a proteção do direito ao aborto - dois símbolos de uma América dividida, que vê agora ameaçado um direito conquistado há quase 50 anos.

"A Constituição não faz qualquer referência ao aborto e nenhum dos seus artigos protege implicitamente esse direito", escreveu o juiz Samuel Alito em nome da maioria. Neste contexto, Roe vs. Wade "deve ser anulado", apontou, antes de acrescentar: "Chegou a hora de devolver a questão do aborto aos representantes eleitos pelo povo."

De facto, ao revogar a decisão Roe vs Wade de 1973, o Supremo - que votou 6 contra 3, com todos os juízes conservadores a alinharem com a maioria - está a tornar o aborto ilegal nos EUA, deixando a cada um dos 50 Estados a liberdade para o autorizar ou não.

Na prática, esta decisão deverá levar cerca de metade dos 50 Estados a introduzir leis que irão limitar fortemente, criminalizar ou mesmo proibir o acesso das mulheres ao aborto. Com a consequência imediata de obrigar as que queiram recorrer à interrupção voluntária da gravidez a viajarem longas distâncias, até Estados onde o procedimento se mantenha legal. Em 13 Estados proibicionistas há mesmo já leis aprovadas que esperavam apenas a decisão do Supremo para entrar em vigor. Missouri e Dakota do Sul foram os primeiros a anunciar o avanço nesse sentido. O Indiana deverá ser o próximo. Já os liberais Califórnia, Oregon e Washington logo vieram anunciar em conjunto que tencionam continuar a defender o direito ao aborto.

Ao todo, estima-se que sejam cerca de 40 milhões as mulheres americanas que vão perder o acesso ao aborto. Nos Estados que o proíbam, as mulheres que queiram interromper a gravidez terão de fazer um aborto clandestino ou viajar até um lugar que o permita.

"É um dia triste para o [Supremo] Tribunal e para o país", afirmou Joe Biden numa declaração à nação pouco depois de ser conhecida a decisão. Visivelmente irritado, o presidente denunciou uma "ideologia extremista" que está já a afetar outros direitos dos americanos. "O tribunal fez hoje o que nunca fizera antes - retirar expressamente um direito constitucional que é fundamental para tantos americanos." Sublinhando tratar-se de "um erro trágico", lembrou que esta decisão vai "pôr em risco a saúde de milhões de mulheres".

O presidente democrata prometeu fazer tudo o que podia para proteger o acesso das mulheres ao aborto, mas depois desta decisão do Supremo admitiu estar de mãos atadas. A única forma de garantir este direito das mulheres passa por o Congresso "transformar em lei as proteções garantidas por Roe vs Wade".

DestaquedestaqueVolta a ganhar força a ideia de aumentar o número de juízes do Supremo. Nada na Constituição diz que têm de ser nove, apesar de ser assim há 150 anos.

Um dos primeiros a reagir foi o antigo presidente Barack Obama, que denunciou este "ataque às liberdades essenciais de milhões de americanos". Já o seu sucessor na Casa Branca, o republicano Donald Trump, saudou a decisão do Supremo - conseguida graças aos votos dos três juízes que ele teve oportunidade de nomear para aquela instância judicial, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett, e que vieram alterar o equilíbrio para a direita -, considerando que "vai funcionar para todos". Em declarações à FOX News, o ex-presidente garantiu que os juízes se limitaram a "seguir a Constituição".

Um dia depois de o Supremo ter tomado uma outra decisão contra o limite do uso de armas em público, os três juízes liberais - Sonia Sotomayor, Elena Kagan e Stephen Breyer - demarcaram-se desta reversão em relação ao aborto, que surge após 50 anos de luta da direita conservadora contra Roe vs Wade . "Uma consequência da decisão tomada hoje é inevitável: a redução dos direitos das mulheres e do seu estatuto enquanto cidadãs livres e iguais", afirmaram numa posição conjunta.

Mas a deriva conservadora do Supremo pode não se ficar por aqui. Num documento pessoal que acompanha a decisão sobre o aborto, Clarence Thomas admite: "Nos procedimentos futuros" sobre o respeito à privacidade "devemos rever toda a jurisprudência." O mais conservador dos juízes conservadores cita então três sentenças: Griswold vs Connecticut, de 1965, que estabelece o direito à contraceção; Lawrence vs Texas, de 2003, que declara inconstitucionais as leis que sancionam relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, e Obergefell vs Hodges, de 2015, que protege o casamento para todos nos EUA.

Segundo Thomas, como essas jurisprudências se baseiam no mesmo preceito da Constituição que protegeu o direito ao aborto, o Supremo tem "o dever de "corrigir o erro"" que estabeleceu. Seria então necessário analisar se outros artigos da Constituição "garantem os direitos infindáveis" assim "gerados", explicou. Por enquanto é apenas a opinião de um dos nove juízes que compõem aquela instância judicial, mas pode ser um sinal de que a reversão em relação ao aborto foi apenas o início.

Depois desta decisão, volta a ganhar força a ideia de aumentar o número de juízes do Supremo, um cargo vitalício. Afinal, nada na Constituição diz que têm de ser nove, apesar de ser assim há 150 anos. E claro que nesse intervalo de tempo vários presidentes tentaram alargar o tribunal, mas sem sucesso. E quando era vice-presidente, o próprio Biden disse ser contra.

Para já, o que podemos esperar é uma espécie de "guerra" aberta entre a América liberal e a América conservadora, simbolicamente representadas pelas manifestações em sentido oposto frente ao edifício do Supremo na capital federal.

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