Internacional
01 outubro 2022 às 21h20

A metamorfose ambulante e o Trump dos trópicos tinham encontro marcado

Luiz Inácio, dez anos mais velho, foi miserável, foi operário, foi sindicalista, foi chefe de Estado, foi presidiário e é hoje o candidato favorito. Jair Messias só quis ser soldado. Acabou presidente.

João Almeida Moreira, São Paulo

Depois de um domingo a catar caranguejos nos arredores de Santos, litoral do estado de São Paulo, a segunda-feira de 21 de março de 1955 do menino Luiz Inácio da Silva, 10 anos, filho de nordestinos que migraram para o sudeste a fugir da miséria, foi igual a todas as outras: a vender laranjas no cais. Para os descendentes de italianos Olinda e Percy Bolsonaro, pelo contrário, aquele dia, vivido a 560km dali, na pequenina Glicério, também no estado de São Paulo, foi memorável: nascia, após gravidez complicada, o seu terceiro filho, Messias.

Enquanto "Lula", o diminutivo pelo qual era chamado pelos pais, Dona Lindu e Aristides, e os mais de dez irmãos e meios-irmãos, filhos do pai com uma prima da mãe, que também vivia com a família numa barraca em Santos, só foi acrescentado em cartório anos mais tarde, o "Jair", de Bolsonaro, seria oficializado apenas instantes antes do registo, por decisão do sr. Percy, ao perceber que o filho nascia no dia de aniversário do seu ídolo, Jair da Rosa Pinto, craque do Palmeiras à época.

Já em São Paulo, para onde Dona Lindu, a sua maior inspiração na vida e na política, escapou do marido intimidador, Lula foi engraxador de sapatos, empregado de tinturaria e auxiliar de escritório antes de tirar o curso de torneiro mecânico, aos 16. Aos 19, aquele a quem os bolsonaristas apelidam hoje nas redes sociais de "nove dedos", perdeu o mindinho num acidente de trabalho numa fábrica de parafusos.

Se Lula, que se definiu, já presidente, "uma metamorfose ambulante", em alusão à música de Raul Seixas, mudava de profissão todos os anos, o adolescente Jair Messias, cuja família trocara, entretanto, Glicério pela maiorzinha Eldorado, tinha bem ciente o que queria ser: militar. Conta o próprio que, em 1971, com 15 anos - já Lula havia sido convencido por um irmão a entrar na vida sindical - ajudou o exército na busca do esconderijo onde o guerrilheiro Carlos Lamarca montara um campo de resistência à ditadura militar.

Entretanto, no mesmo ano, 1977, em que Bolsonaro se formava na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro, onde faria a sua carreira política, Lula começava a preparar as greves de metalúrgicos nos arredores de São Paulo que o levaram à prisão, primeiro, e à política, a seguir.

Em 1986, já Lula tinha fundado o Partido dos Trabalhadores e fora eleito deputado federal, Bolsonaro experimentou, também, a prisão, por 15 dias, após escrever artigo na revista Veja intitulado "o salário [dos militares] está baixo" e articulado ataques bombistas a quartéis para forçar o aumento. E como ao rival de hoje, a cela serviu-lhe de antecâmara da política.

De 1989 a 2018, foi um parlamentar de baixo clero que cultivou, em nove partidos, um eleitorado fiel de militares, polícias e quem mais usasse armas. Raramente levado a sério pelos pares, ganhou poder mediático por força das constantes, e chocantes, intervenções públicas - defendeu o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, elevou torturadores a heróis nacionais, lamentou ter morrido pouca gente na ditadura, disse preferir um filho morto a um filho gay e protagonizou cenas de misoginia e racismo antes de decidir concorrer às presidenciais de 2018, para as quais partiu como outsider.

Por essa altura, já Lula perdera três e ganhara duas. Depois de governar muito mais ao centro do que o seu passado sindical faria supor, ainda ajudou Dilma Rousseff, a vencer outras tantas. Nos seus mandatos, criou programas que colocaram 40 milhões de brasileiros na sociedade de consumo, tirou o Brasil do Mapa da Fome, ganhou projeção internacional e acabou a gestão com mais de 80% de aprovação. Mas, pragmático compulsivo, aliou-se ao pior da política, que tanto criticara na oposição, e acabou enrolado pelo Mensalão, que se não abalou a sua popularidade, pelo menos arranhou-lhe a reputação.

Depois do traumático impeachment da sucessora, Lula preparava-se, como Bolsonaro, para concorrer ao Planalto em 2018 quando a Operação Lava-Jato, que condenou uma centena de políticos a partir de escândalos na estatal Petrobras, o levou à prisão, por ordem do juiz Sergio Moro. Bolsonaro, beneficiando-se do furor da operação, de campanha na internet eficaz mas desleal e dos ventos que sopravam dos Estados Unidos com a ascensão de Donald Trump, o seu ídolo, acabou eleito com um programa reacionário nos costumes e liberal na economia, muito "Deus" no discurso e Moro no governo.

No decorrer do mandato de Bolsonaro, que já foi casado três vezes, assim como Lula, e tem cinco filhos, tal como o rival, o Supremo considerou a atuação de Moro na Lava Jato violadora da Constituição por parcialidade. E Lula, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, acabou solto, após 580 dias - período em que enviuvou pela segunda vez e perdeu um irmão e um neto, de 7 anos - numa cela em Curitiba.

Com os direitos políticos retomados, o ex-vendedor de laranjas tomou a dianteira das sondagens para 2022, à frente do homónimo do craque do Palmeiras, desgastado pela crise económica, pela condução suicida da pandemia e por ataques à democracia, num duelo violento anunciado nas estrelas.

Mas para Bolsonaro, que superou atentado à faca durante a campanha eleitoral de 2018, e para Lula, que sobreviveu a cancro na laringe em 2011, a eleição de hoje é apenas mais uma batalha.

dnot@dn.pt