Afeganistão. A guerra que Biden quis acabar e ameaça voltar-se contra ele

O presidente dos EUA está a ser criticado pela falta de planeamento na retirada das tropas americanas do Afeganistão, que permitiu o rápido regresso ao poder dos talibãs. "Falhanço vergonhoso" e "revés para a segurança" foram algumas expressões usadas para descrever o que se adivinha ser uma mancha na sua presidência.
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Ainda candidato, em 2019 Joe Biden lembrava aos americanos que se vencesse as eleições seria o primeiro presidente dos EUA desde Dwight Eisenhower, nos anos 50, a ter tido um filho que servira num cenário de guerra. O filho era Beau Biden, que serviu no Iraque, onde recebeu a Estrela de Bronze por bravura. Beau morreu de cancro em 2015. Mas este seu sacrifício não será alheio à insistência de Joe Biden em retirar as tropas americanas do Afeganistão. Uma posição que manteve desde os tempos de vice-presidente de Barack Obama, mesmo se em 2001, como senador, votara a favor do invasão do país para derrubar o regime dos talibãs, na sequência do 11 de Setembro.

Chegado à Casa Branca, Biden não hesitou: era hora de pôr fim à mais longa guerra dos EUA. E ao fim de 20 anos, o presidente ordenou a retirada das últimas tropas - a data era simbólica: o último militar sairia a 11 de setembro. O que Biden não contava era com a fulgurante ofensiva dos talibãs que em poucos dias, aproveitando a saída das tropas estrangeiras, conquistaram capital provincial atrás de capital provincial até chegarem a Cabul no domingo. Perante o olhar atónito do mundo, os "estudantes de religião" entravam no palácio presidencial, horas apenas após o presidente Ashraf Ghani fugir do país e perante a aparente inércia do exército afegão. "Os talibãs ganharam", escrevia Ghani no Facebook; "A guerra acabou", anunciava um porta-voz dos rebeldes na Al-Jazeera.

Uma guerra que parece terminar agora, sim, mas não da forma que Biden sonhou. E que ameaça agora virar-se contra ele.

Forçado a aprovar o envio de emergência de milhares de tropas americanas para apoiar a retirada de militares e civis americanos, o mesmo Biden que em junho garantia "não haverá circunstância alguma em que vão ver pessoas a serem levadas do telhado de uma embaixada dos EUA no Afeganistão", numa referência à queda de Saigão, no final da guerra do Vietname em 1975, ia mesmo ver helicópteros a voar nos céus de Cabul e a pousar no recinto da embaixada americana para levar o pessoal que ainda lá se encontrava.

Mas não se pense que sair do Afeganistão era uma obsessão só de Biden. Já Obama prometera retirar do país que Bush filho mandara invadir com apoio unânime da comunidade internacional e Donald Trump, denunciando a "guerra sem fim" traçara maio deste ano como data da retirada.

A própria opinião pública americana era largamente a favor da saída do Afeganistão: ainda em julho uma sondagem mostrava 70% de apoio à retirada das tropas.

Mas isso foi antes do avanço fulgurante dos talibãs. Com a visão dos rebeldes barbudos de turbante e lança-rockets na mão de volta às ruas de Cabul e de quase todas as grandes cidades afegãs, voltam os receios de que os talibãs de 2021 não sejam assim tão diferentes dos de 2001, aqueles que nos seus cinco anos de regime proibiram as meninas de ir à escola, perseguiram as minorias como os hazaras, realizavam execuções públicas nos estádios e destruíram os budas de Bamiyan, símbolo da história do Afeganistão pré-islão.

"A debacle da retirada caótica dos EUA do Afeganistão é um desastre político para Biden, cujo falhanço a orquestrar uma saída urgente e ordeira vai marcar a sua presidência e manchar o seu legado", escreveu na CNN o analista Stephen Collinson.

As críticas não se fizeram esperar. Primeiro, claro, do lado dos republicanos. Para Mitch McConnell, o líder da minoria republicana no Senado, "a saída, incluindo a retirada frenética de americanos e afegãos vulneráveis de Cabul, é um falhanço vergonhoso da liderança americana". O congressista republicano Michael McCaul foi ainda mais longe, afirmando na CNN que Biden vai ter "sangue nas mãos pelo que fez", enquanto o ex-presidente Donald Trump apelou à demissão do seu sucessor "pelo que aconteceu no Afeganistão, mas também pelo aumento vertiginoso da covid, o desastre na fronteira, a supressão da nossa independência energética e a paralisia da economia".

Mas as críticas não vieram só da oposição. Ryan Crocker, embaixador no Afeganistão durante a administração Obama, denunciou a "total falta de coordenação e planeamento" dos EUA de Biden. E o general David Petraeus, ex-diretor da CIA que supervisionou as tropas americanas no Afeganistão também com Obama, considerou a tomada do poder pelos talibãs como "catastrófica" e "um enorme revés para a segurança" dos EUA.

Apesar de Biden repetir que os afegãos têm de "lutar por eles próprios", a verdade é que o exército não opôs qualquer resistência aos talibãs. Apesar dos seis mil milhões de dólares por ano que Obama gastou por treinar e equipar as forças armadas afegãs, o The Washington Post citava ontem documentos do Pentágono em que altos responsáveis militares admitiam sempre ter tido dúvidas sobre o grau de prontidão das forças armadas afegãs. "Pensar que podíamos construir um exército tão rápido e tão bem era uma loucura", admitia um.

Segundo o mesmo jornal americano, o avanço talibã foi conseguido à custa de acordos secretos feitos com governantes e militares afegãos - entre subornos, ameaças e promessas de benesses futuras se baixassem as armas.

Se o exército assistiu quase impávido ao avanço talibã, ontem chegou o primeiro apelo à resistência vindo do Afeganistão. E veio pela voz de Ahmad Massud, filho de Ahmad Shah Massud, mujaedine herói da guerra contra os soviéticos e fundador da Aliança do Norte, assassinado em 2001 pela Al Qaeda dias antes dos atentados de 11 de Setembro. "Os meus companheiros de armas e eu ofereceremos o nosso sangue, juntamente com todos os afegãos livres que rejeitam a servidão, a quem convoco para se juntar a mim no nosso reduto de Panjshir, a última região livre no nosso país", disse Massud numa mensagem dirigida a pessoas "de todas as regiões e todas as tribos".

Numa coluna na revista francesa La Règle du jeu, fundada pelo filósofo Bernard Henri-Lévy, o filho do herói da resistência antissoviética que mais tarde lutou contra os talibãs, diz reivindicar como sua a luta do pai "pela liberdade, enquanto a tirania se impõe no Afeganistão".

Ahmad Massud considera que "apesar do desastre total (...) nem tudo está perdido". "Somos afegãos e estamos na mesma situação que a Europa em 1940", escreve no texto, citando Churchill e o general De Gaulle, para defender a causa da resistência. "Dirijo a todos vocês, em França, na Europa, na América, no mundo árabe e noutros lugares, que tanto nos ajudaram na luta pela liberdade, primeiro contra os soviéticos e contra s talibãs há 20 anos (...) virão, queridos amigos da liberdade, nos ajudar mais uma vez como no passado? Confiamos em vocês, embora a traição de alguns tenha sido grande." No dia anterior, Massud, que lidera uma formação política denominada Frente para a Resistência, exortou Henri-Lévy - que em 2011 incentivou o então presidente Nicolas Sarkozy a agir na Líbia - a "intervir perante Paris" para obter o apoio da França.

Enquanto multidões de afegãos que tentavam fugir do país lançaram o caos no aeroporto de Cabul, com pelo menos sete mortos, a diplomacia começava a trabalhar com a nova liderança afegã. Para hoje está previsto um encontro entre os talibãs e o embaixador russo em Cabul, Dmitry Zhirnov. Segundo o enviado do Kremlin para o Afeganistão, Zamir Kabulov, o encontro visa discutir "questões relacionadas com a segurança da embaixada russa". Quanto a Moscovo reconhecer o novo regime talibã "dependerá das suas ações".

A China, por seu lado, anunciou que quer manter "relações amigáveis" com os talibãs. Pequim "respeita o direito do povo afegão a decidir o próprio destino" disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A União Europeia convocou para hoje uma reunião extraordinária de ministros dos Negócios Estrangeiros para discutir a situação.

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