"A União Europeia é um modelo de como poderemos imaginar a América Latina"
Chega à presidência do CAF - Banco de Desenvolvimento da América Latina depois da pandemia. Uma dificuldade extra para o seu novo cargo?
Todos os organismos multilaterais que operam na América Latina, e os governos, tiveram que redesenhar e ajustar as estratégias pelo caminho. O vírus, à medida que respondemos às perguntas que ele nos coloca, vai mudando de perguntas. Estamos sempre em diálogo com os sócios do CAF para conseguir uma reação rápida, mas com um olhar de longo prazo, para que sejam medidas sustentáveis, com grande suporte digital e com as pessoas no coração da estratégia.
Quais são os projetos mais desafiantes que tem pela frente?
Ao sair de Glasgow, da Cimeira do Clima, há umas semanas, fizemos uma proposta de valor para que nos próximos cinco anos o CAF aumente o seu financiamento verde. Queremos que passe de 26% do total em projetos e investimentos verdes, valor registado no ano passado, para até 40% em 2026. Isto implica uma mobilização de 25 mil milhões de dólares na região. Aspiramos a mobilizar mais recursos para a região, aproveitando mais meios de outros sócios ou do setor privado, que permitam à América Latina concentrar-se na sua estratégia de adaptação à mudança climática e no caminho até à neutralidade de carbono. A médio prazo, mas com um foco atual, esse é o maior desafio que temos na CAF. Acompanhar os governos rumo a economias mais verdes, mais sustentáveis e mais bem preparadas. A América Latina é uma região especialmente vulnerável. Já vimos isso com a covid: com 8% da população, tivemos 35% de mortos; e com 16% do território global do planeta e 800 milhões de hectares de bosques, a América Latina tem quase 50% da biodiversidade mundial (com as espécies todas misturadas).
A América Latina é uma região de grande diversidade social, económica e política. Como interatua o CAF com os distintos governos?
Temos uma região muito diversa, com países de diferentes tamanhos, aspirações, desenvolvimento e métodos. O CAF trata de perceber e compreender essa diversidade e de ser um ator relevante, mantendo níveis de diálogo fluido com autoridades, sociedade civil, setor privado, para incidir positivamente no desenvolvimento da nossa sociedade e das nossas economias. Não há uma receita para todos, temos que perceber cada país no seu contexto e tratar de produzir projetos e iniciativas que estejam de acordo com a conjuntura de cada um e o interesse dos próprios sócios. Cada país é um mundo distinto. A soma de tudo dá um projeto de envergadura, mas o CAF continua a ser um banco continental que trabalha com soluções nacionais e regionais.
Destaquedestaque"A fortaleza de Portugal e de Espanha está nas Américas, e são a nossa ponte em direção à Europa. Era natural que, na sua expansão, o CAF tivesse como sócios naturais Portugal e Espanha."
Há muito trabalho de diplomacia passiva?
Sim, o nosso trabalho é sermos mensageiros entre os países, para procurarmos o entendimento, a concórdia, criarmos pontes imaginárias e físicas. Esta foi a sempre a nossa razão de ser. Lembro as palavras de Carlos Lleras Restrepo, que afirmou, durante a formação do CAF, que a integração é o caminho, o espírito e o destino. É uma descrição completa do que significa a integração para a América Latina. O CAF já é uma experiência de integração, de todos os governos acordarem fazer algo em conjunto, que produza resultados para eles. Nasceu como um banco sub-regional andino [região dos Andes] e hoje é um banco continental, com a presença ativa e importante de Portugal e Espanha como sócios.
Qual é o papel de Portugal e de Espanha?
É um papel muito importante, porque temos a mesma comunidade e partilhamos o mesmo destino. A fortaleza de Portugal e de Espanha está nas Américas, neste hemisfério, e são a nossa ponte em direção à Europa. Era natural que, na sua expansão, o CAF tivesse como sócios naturais Portugal e Espanha. Muitos desafios da América Latina também são desafios nos quais Portugal e Espanha já trabalham e podem partilhar soluções, como a transição energética, o desenvolvimento de infraestruturas, o sistema de água. Os dois países podem contribuir muito. O CAF tem investimentos nos dois países através da Sociedade de Investimento portuguesa e do Cofides espanhol. E mantemos contacto com diretores de Lisboa e Madrid para fomentar a presença e financiamento de empresas portuguesas e espanholas. Podemos fazer mais e queremos fazer mais, como fomentar o investimento para que estejam mais presentes e participem nas soluções que a região quer produzir. Muitas ações irão precisar da intervenção do setor privado.
Qual o maior inimigo para o desenvolvimento da América Latina?
A pobreza, a desconfiança... e a desinformação, que leva a desestabilizar os sistemas e cria conflitos que levam à ruína. O desenvolvimento que atingimos é muito frágil, temos que percorrer ainda 50% em matéria de desenvolvimento e temos adversários complexos, como a pobreza, a informalidade, a falta de esperança de milhares de jovens. Temos um grande desafio: mais de 140 milhões de jovens não puderam acompanhar as aulas durante os meses do confinamento porque as escolas não estavam prontas digitalmente. Isso irá repercutir-se no tempo e temos que encontrar soluções que permitam resolver a perda de produtividade que iremos ter. Somos países com enorme população jovem e devemos procurar esperança e projetos de vida mais viáveis para todos eles.
Destaquedestaque"Os maiores inimigos para o desenvolvimento da América Latina são a pobreza, a desconfiança... e a desinformação, que desestabiliza os sistemas e cria conflitos."
A União Europeia seria o exemplo a seguir para América Latina?
Temos aspirações e uma delas é ter mais comércio intrarregional, como a União Europeia conseguiu ao longo de 70 anos. Precisamos de um modelo com mais homologações, interoperabilidade, coordenação. Quando tudo isto existir entre os países, haverá mais oportunidades de aumentar as exportações e de oferecer emprego formal. A Europa é uma referência importante para nós, em termos de comércio, mercado energético, boas infraestruturas terrestres, etc. Tudo isto nos mostra como poderemos imaginar a América Latina.
dnot@dn.pt