"A pandemia provou que a UE só pode ser forte se se basear numa aliança de Estados-membros fortes"

A ministra da Justiça húngara, também com a pasta dos Assuntos Europeus, esteve em Lisboa onde elogiou a presidência portuguesa da UE. Judit Varga explicou ao DN que na questão das vacinas, o primeiro-ministro Viktor Orbán teve uma política de "Hungria primeiro". Defendeu ainda o fim dos "padrões duplos" na questão do Estado de direito e afastou um possível <em>Hungexit</em>.
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Em dezembro, dizia em entrevista ao DN que esperava uma cooperação frutuosa da presidência portuguesa da União Europeia. Passados três meses do seu início, que balanço faz?
Até agora todas as nossas expectativas provaram estar corretas. Claro que a covid domina a agenda. É um fenómeno que não podemos ignorar. Está sempre a surgir algo novo e inesperado. No que se refere à distribuição das vacinas, recentemente houve questões que surgiram e a presidência portuguesa reagiu de forma flexível e correta. Foi também adotada uma posição do Conselho sobre os Certificados Verdes Digitais, garantindo a não discriminação. A presidência portuguesa tem sido muito cooperante e construtiva.

Estes são tempos difíceis - pandemia, o impacto económico, distribuição de vacinas, fecho de fronteiras. O que podia a UE ter feito de forma diferente?
Para que as coisas corressem melhor? Toda a pandemia, ao longo do último ano, provou que a União Europeia só pode ser forte se se basear numa aliança de Estados-membros fortes. A subsidiariedade é um princípio importante que deve ser aplicado. Deixe-me dar-lhe um exemplo. A Hungria recorreu a ambas as possibilidades na compra de vacinas. Como europeus de fé, assinámos o quadro comum, mas como era uma questão crucial para a saúde da nossa nação, uma questão de vida ou morte, também procurámos outras opções. Era possível e legal fazê-lo. Por isso estamos agora numa boa posição em que duplicamos o rácio de vacinados no nosso país: hoje temos 3,2 milhões - num país com dez milhões de habitantes - de pessoas que receberam pelo menos uma dose. Isto só foi possível graças ao dobro da quantidade de vacinas, porque uma parte vem de fora da UE. Fomos corajosos. Apesar de haver dúvidas e preocupações de alguns parceiros europeus, sempre dissemos que esta decisão entrava no quadro legal da UE. Confiámos nas nossas autoridades, ouvimos os cientistas, os laboratórios e tivemos a coragem de fazer esta opção. Se outros Estados-membros também tivessem acreditado neles próprios como Estados fortes, mantendo ao mesmo tempo o espírito europeu - não é contraditório, é complementar -, talvez enquanto comunidade estivéssemos numa posição melhor. Porque se olhar para o rácio médio de vacinação, é de 13%, 14%. Esta é uma lição que temos de aprender.

A Hungria foi o primeiro país da UE a aprovar a vacina russa Sputnik e a chinesa Sinopharm...
O primeiro-ministro Viktor Orbán está vacinado com a vacina chinesa. E está bem.

Outros países deviam ter feito o mesmo?
Não quero fazer recomendações a outros países, já aprendi a respeitar as políticas nacionais de cada um. Claro que a terceira vaga e a variante britânica estão a afetar os países de formas diferentes. Por isso não há uma solução perfeita para todos. Quando falei de coragem, não estava a falar da vacina, estava a falar das consequências políticas. Basta ler as notícias, temos sofrido duras críticas e tão infundadas. Sobretudo quando estamos no meio de uma dupla crise mundial. Para o governo húngaro, para o primeiro-ministro, o princípio é "a Hungria primeiro". Claro que estamos atentos ao que os outros estão a fazer, mas estamos concentrados nos nossos dados, no trabalho dos matemáticos e dos órgãos científicos. Não são os políticos que estão a analisar os dados. Os políticos são quem tem de decidir, de forma responsável. No início de fevereiro, fizemos uma consulta nacional para saber até que ponto a população esperava que reabríssemos. É um bom princípio, ouvir a opinião dos cidadãos.

Como lidar com essas críticas constantes à Hungria, sendo alguém que viaja muito, sobretudo pela Europa?
Este é um mantra mau forçado pelos media liberais. Mas nós provámos que podemos ser um país europeu solidário, mas ao mesmo tempo manter a nossa identidade nacional. E tentamos provar que "unidos na diversidade" ainda é o motto - que não é só a unidade que é importante, é também a diversidade. Feitas as contas, estas críticas, são uma batalha ideológica. Uma batalha entre dois mundos : o mundo liberal de esquerda, que hoje domina a maioria dos governos na Europa, enquanto na Hungria estamos na minoria conservadora, com um governo 100% conservador, sem coligações. É uma situação rara na Europa. Mas sim, pode existir um governo conservador, que respeita totalmente as posições dos outros, mas que exige respeito pelos nossos pontos de vista - na imigração, nas políticas de família, na forma de lidar com uma crise económica. Isso já fora problemático em 2010, quando em vez de convidar o FMI, com os seus empréstimos que obrigavam a reduzir os salários - e que foram a receita comum - , nós decidimos tentar outro caminho. Fomos chamados de iliberais, pouco ortodoxos. Não interessa. Foi o nosso caminho, que achámos o melhor para o nosso país. E provou funcionar. Há dez anos que denunciam a morte da democracia na Hungria, mas esta está a florescer. E até temos, uns média plurais. Na Hungria ainda se encontram uns 40% de média de direita ou conservadores. Vivi em Bruxelas nove anos. Todas as manhãs abria os jornais e 90% era predominantemente de esquerda ou liberal. Na Hungria há um verdadeiro pluralismo e democracia. Não sendo a posição dominante na Europa, não deixa de ser uma posição legítima: ser húngaro e não concordar com uma união federalista ou com uma visão supra-estatal, mas sim com nações fortes. E não é nacionalismo. Muitas vezes, quando dizemos a palavra "nação", as pessoas pensam logo em nacionalismo. Mas não. Para nós, a Nação tem outro significado.

Qual?
É a chave da nossa sobrevivência ao longo da História. Nós vivemos na bacia dos Cárpatos, no corredor entre Este e Oeste. Muitos impérios passaram pelo nosso território. Para nós, húngaros, sermos fiéis à nossa cristandade, à nossa cultura, à nossa língua, foi a chave para a sobrevivência. Não tem a ver com qualquer tipo de agressão, é um pedido humilde para que nos respeitem. No preâmbulo da nossa Constituição, dizemos que temos muito orgulho pelo facto de, ao longo dos séculos, a luta e o sangue dos húngaros defenderem a cultura europeia. Defendemos as fronteiras da Europa. Há uns anos tive boa discussão com Paulo Rangel no PPE. Ele é um intelectual, com muito conhecimento nesta matéria. Nós concordámos que vocês aqui em Portugal têm uma experiência completamente diferente no que se refere à imigração, à História, a tudo. É completamente diferente do que é evoluir e sobreviver como país nos Cárpatos. Esta é uma das razões pelas quais não acredito que a UE alguma vez seja uns Estados Unidos da Europa. É isso tem a ver com a saída do Fidesz do PPE.

De que forma?
Os nossos princípios nunca mudaram. O programa de campanha do Fidesz em 1998 já referia que acreditamos na cristandade, no modelo familiar tradicional, em Nações fortes, acreditamos na subsidiariedade, que rejeitamos o comunismo. Porque aprendemos as nossas lições.

O primeiro-ministro Viktor Orbán também lutou contra o regime comunista...
Ele era o nosso ícone, o nosso ídolo. E continua a ser. A luta contra o comunismo é a base da espiritualidade do Fidesz.

E como chegamos a esta rutura, com a saída do Fidesz do PPE para não ser expulso?
Porque o PPE se está a afastar destes princípios básicos. Quando o senhor Kohl nos convidou para integrar o PPE, há muitos anos, era um PPE muito diferente do que é hoje. Se olhar para os fundadores do PPE, hoje políticos sábios e reformados, eles também veem um avanço bastante agressivo da ala liberal, que exige exclusividade: ou pensamos como eles ou não existimos politicamente. E os políticos, ou perdem a batalha pelos seus princípios e se perdem nesta linha multicultural e ideológica da política mainstream, ou são corajosos e defendem os seus princípios como sendo o mais importante. O PPE cometeu o erro de entrar na corrida a ver quem é mais liberal. Não percebeu que isso se vai acabar por virar contra os seus eleitores. E como o primeiro-ministro Orbán alertou há milhões de cidadãos europeus que se sentem abandonados porque não encontram uma representação política.

Depois da saída do PPE, o primeiro-ministro Orbán falou em criar o seu próprio grupo de direita "para o nosso tipo de pessoas". Referia-se a esses cidadãos que procuram representação?
Sim. É preciso estar ao lado do povo, dos cidadãos que acreditam em Estados-membros fortes, que respeitam todos mas que exigem poder decidir em vários assuntos de soberania. Precisamos de liberdade e responsabilidade para escolher nossa própria política económica. Por exemplo, o pilar social é central na presidência portuguesa da UE. Com base na liberdade para escolher as nossas políticas económicas, em 2010 afirmámos acreditar numa sociedade baseada no trabalho. E funcionou. O salário mínimo, por exemplo, duplicou nos últimos dez anos. Neste assunto não precisamos de uma regulação central da UE, precisamos de dar liberdade aos Estados-membros para decidir como querem evoluir de forma sustentável.

Referiu há pouco o bloqueio da Hungria - e Polónia - ao orçamento europeu e ao fundo de recuperação por discordarem do mecanismo de condicionava a entrega dos fundos ao respeito do Estado de direito. A situação acabou por se desbloquear. Como é que foi visto na Hungria, os fundos eram essenciais para a recuperação da economia?
Voltemos a julho de 2020, quando chegámos a um acordo de alto nível de que os recursos não podem ser vinculados a expectativas ideológicas. Apesar de a Hungria não estar filosoficamente de acordo com a contração de um enorme empréstimo - aprendemos nos tempos comunistas que não corre bem quando vamos ao mercado pedir empréstimos durante uma crise - pusemos as dúvidas de lado e, por uma questão de solidariedade especialmente com os Estados-membros que mais precisavam do dinheiro, assinámos o acordo. E o Conselho Europeu, que é o órgão político da UE, afastou a pressão ideológica. Isso ficou claro no acordo. O que aconteceu depois foi que o Parlamento Europeu e a pressão de alguns Estados-membros levou a este conflito em novembro. Desde o início que nós dissemos que não concordaríamos com algo que fosse contra a nossa soberania. Basta ler o que foi dito em dezembro por alguns dirigentes, que "finalmente temos uma ferramenta para pôr alguns Estados na linha." O que é isso senão pressão? Mas felizmente conseguimos mudar isso. Foi uma bomba que tivemos de desmantelar. O senso-comum acabou por prevalecer. Claro que este é o maior pacote financeiro de sempre na Europa, para a Hungria e para todos os países, mas não foi essa a questão essencial para a nossa decisão.

Diria que foi mais do que pressão?
Foi chantagem. Foi o que lhe chamámos nos media porque precisámos de encontrar a palavra certa para que as pessoas percebessem. Não existe uma definição uniforme do Estado de Direito. Os países são diferentes. Não gosto de dar exemplos de outros Estados-membros, de falar dos seus sistemas judiciais ou da morte de jornalistas. Nada disso acontece na Hungria. O jogo da culpa é muito perigoso. Na área do Estado de direito, precisamos de mais diálogo constitucional, respeito mútuo e da eliminação de padrões duplos para nos entendermos.

Apesar desta relação tensa, mais de 80% dos húngaros querem a Hungria na UE. Não se avizinha um Hungexit?
Temos uma política pro-europeia. Não domina o euroceticismo de que somos muitas vezes acusados. Nós sempre pertencemos à Europa, mas devido aos 40 anos de comunismo, não podíamos estar unidos. Lutámos por esta liberdade e por este lugar na Europa. Hoje temos uma posição forte da Europa central, com o grupo de Visegrado em que quatro países liderados por partidos políticos diferentes têm uma cooperação de sucesso. As coisas estão a mudar na UE.

O Brexit veio acelerar essa mudança de equilíbrios?
Claro. Perdemos o nosso grande e velho aliado. O Reino Unido acreditava em muitas coisas que a Hungria defende. A Europa não ouviu as vozes dos britânicos e não lhes deu respostas. Mas Bruxelas parece não ter aprendido. Se forçar mais Europa a toda a hora sem pensar nas características nacionais, não vai correr bem. Mas não há o perigo de um Hungexit. Somos defensores do status quo. Aderimos ao quadro legal baseado nos tratados é só o queremos ver a funcionar. O problema com a questão do Estado de direito é que ia contra os tratados. Estes dizem que se há uma violação do Estado de direito, há o artigo 7, que requer unanimidade para sancionar um país. O que tentaram fazer foi contornar esse artigo com uma regulação de nível inferior. Isso não vai contra os tratados, contra o Estado de direito? Na Hungria temos um governo que tem uma maioria de dois terços. Para o ano temos eleições e deixemos os húngaros decidir se são felizes a viver no seu país, se estão satisfeitos ou não.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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