Enquanto as urnas de militares continuarem a desfilar nas ruas não há condições para haver urnas eleitorais.
Enquanto as urnas de militares continuarem a desfilar nas ruas não há condições para haver urnas eleitorais.Foto: Sergey Dolzhenko/EPA

A morte política de Zelensky é manifestamente exagerada

Compatriotas unem-se em torno do presidente após os ataques verbais de Trump. Consenso social e político de que só é possível eleições pelo menos seis meses depois da lei marcial ser levantada.
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É uma citação recorrente e, ao que parece, pouco rigorosa de Mark Twain. Dotado de uma ironia intemporal, o escritor norte-americano declarou que a notícia da sua morte “foi um exagero” ao responder a um jornalista que lhe perguntava se estava vivo ou gravemente doente. Ao presidente da Ucrânia, que ganhou fama a fazer humor, não se questionou a sua saúde, mas a legitimidade, com a Administração Trump a fazer eco das alegações de Moscovo de que Volodymyr Zelensky não tem legitimidade. Primeiro, Vladimir Putin e os seus homens afirmavam que o governo ucraniano era um “regime neonazi”, agora diz que o seu termo expirou em maio passado e, como tal, não pode falar pela Ucrânia. Num ápice, as eleições presidenciais no país passaram a ser não só um assunto, mas uma exigência dos Estados Unidos, com o enviado especial Keith Kellogg a apontar para o final deste ano. Mas este é um tema que não desperta controvérsia no país em guerra. E, ao contrário do que Donald Trump afirmou, o presidente ucraniano continua a gozar de grande popularidade. A sua morte política é um exagero.

Numa espiral de declarações que poderiam ter sido retiradas da cartilha do Kremlin, Donald Trump chamou a Zelensky “ditador sem eleições”, disse que o seu “índice de aprovação desceu para 4%”, e sugeriu que ele não ficaria “ por muito tempo” no poder, se não fizesse um acordo com a Rússia. Ainda que fosse verdade, estaria numa situação bem melhor do que a do presidente norte-americano: segundo uma sondagem Ipsos realizada para a revista The Economist, Trump tem uma imagem negativa (-3 pontos) perante os eleitores dos EUA, ao contrário de Zelensky (8 pontos positivos).

46%
Ucranianos que votariam em Zelensky. Mais de sete em cada dez aprovam o seu trabalho e oito em dez dizem que se mantém no cargo de forma legítima.

A pressão dos EUA foi um toque a rebate na sociedade ucraniana, e um dos efeitos traduziu-se no aumento da popularidade do presidente. Até há muito pouco tempo, o ex-comandante das forças ucranianas Valerii Zaluzhnyi aparecia no topo das preferências dos ucranianos. Uma sondagem realizada em novembro atribuía ao agora embaixador 27% das preferências dos ucranianos, seguido de Zelensky com 16%. Segundo a citada Ipsos, já depois de o líder ucraniano ter sido sujeito ao indecoro diplomático na Casa Branca, 46% dos ucranianos votariam agora nele, e 31% em Zaluzhnyi. De forma esmagadora, oito em dez, os inquiridos consideram o seu mandato legítimo, e igual número está contra a realização de eleições em período de guerra ou durante um cessar-fogo.

Segundo a lei ucraniana, as eleições estão vedadas durante a vigência da lei marcial, tal como aconteceu no Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial. Mais de 130 organizações não-governamentais publicaram uma declaração a reafirmar essa impossibilidade. Mas alguns membros da equipa de Trump enveredaram em conversas com líderes da oposição para explorarem essa hipótese depois de as relações entre os presidentes terem azedado.

O anterior presidente Petro Poroshenko e a antiga primeira-ministra Yulia Tymoshenko confirmaram os contactos, mas disseram rejeitar qualquer hipótese de haver um ato eleitoral com a guerra a decorrer. Se houvesse eleições neste quadro, Moscovo seria a principal beneficiada. “As eleições na Ucrânia prejudicariam a unidade. Quem é que vai ganhar estas eleições? Poroshenko? Zelensky? Duvido. Há uma pessoa que as vai ganhar - Putin”, escreveu Poroshenko no X.

A alegada ilegitimidade de Zelensky enquadra-se na máquina de propaganda russa, cujo regime não reconhece a queda do seu aliado Yanukovich na revolução de 2014. Zelensky também é pintado como um cocainómano e um corrupto, que desvia o dinheiro do Ocidente para comprar mansões, ora em Itália, ora em Inglaterra, ora em França.

Ainda sem horizonte temporal, as eleições contarão com o 6.º presidente do país como candidato? “Depende de como a guerra acabar”, reconheceu o próprio no início do ano. Quanto a Zaluzhnyi, até agora remeteu-se ao silêncio. “Tem ambições políticas e é muito popular entre os ucranianos, embora nunca tenha falado sobre eleições e tenha evitado perguntas sobre a sua potencial candidatura presidencial”, disse ao DN Kateryna Denisova, editora do Kyiv Independent. A jornalista aponta para o recente lançamento de um canal do general no YouTube, “um passo político e invulgar para um embaixador, especialmente tendo em conta o seu conteúdo”.

Condições para o ato

Uma vez alcançada a paz, quanto tempo demorará para poder realizar eleições segundo os padrões democráticos? Em 2023, os diferentes partidos no Parlamento concordaram que as eleições devem realizar-se seis meses depois do levantamento da Lei Marcial. Mas é apenas um indicador.

10
Meses é o período de tempo mínimo estimado para se poder realizar eleições de forma segura, justa e inclusiva, a partir do cessar-fogo.

“É extremamente difícil responder, porque os desafios relacionados com a guerra que se colocam ao próximo processo eleitoral (principalmente a migração interna e externa em massa, a destruição em grande escala de infraestruturas, organização da votação no estrangeiro e pessoal militar) permanecem atuais e só se agravam a cada dia que passa”, disse ao DN a constitucionalista Olha Ivasiuk, do think tank Centro de Reforma Política e Jurídica. Segundo peritos ouvidos por Kateryne Denisova, organizar o ato eleitoral não é para menos de dez meses.

Para garantir eleições em condições, Ivasiuk diz que a Ucrânia precisa de uma cibersegurança de “alta qualidade para proteger o registo de eleitores do Estado e o sistema de informação da Comissão Eleitoral Central”. Isto porque não tem dúvidas de que o Kremlin “tentará travar uma guerra híbrida e que o processo eleitoral decorrerá num período instável”. Em paralelo, defende reformas na legislação relativa à comunicação social e restrições aos “porta-vozes das narrativas do Kremlin”.

O líder e os sete pretendentes

Volodymyr Zelensky

Depois de ter feito as vezes de um professor de liceu que chega à Presidência do país na série de TV Servo do Povo, o comediante foi levado a sério nas urnas. No poder desde 2019, esteve no centro do caso em que Donald Trump veio a ser alvo do primeiro processo de destituição. Perante a invasão russa, recusou o convite dos EUA para se exilar e, desde então, todos os dias, é a voz da resistência, embora nem sempre coerente. Com altos (aproximação à UE com a obtenção do estatuto de candidato e abertura das respetivas negociações) e baixos (contraofensiva falhada de 2023, plano da vitória), aos 47 anos, Zelensky é o líder (quase) incontestado do país. Quando assumiu a Presidência levou os amigos e conhecidos da produtora de TV que cofundou. Desses tempos sobra o chefe de gabinete Andriy Yermak, de quem se diz exercer tanto poder quanto o presidente.

Valerii Zaluzhnyi

Num país em que a corrupção é um problema sistémico, deu provas de desapego: ao receber uma herança de um milhão de dólares de um ucraniano emigrado nos EUA, doou a quantia às Forças Armadas que então comandava, em 2023. O general já era visto como uma herói, porque conseguiu repelir com sucesso as primeiras vagas da invasão e recuperar praticamente toda a região de Kharkiv num assalto surpresa. Mas a tão esperada - e demorada, por razões alheias - contraofensiva saldou-se em nada e quando disse que a dita estava num impasse, assinou a sua sentença na relação com o presidente e quanto ao cargo. Enviado para o Reino Unido onde é embaixador (além dos estudos militares é também mestre em Relações Internacionais), Zaluzhnyi, de 51 anos, já esteve à frente de Zelensky em sondagens, mas não se pronuncia sobre ambições políticas.

Petro Poroshenko

Eleito presidente após a revolução de 2014 (um golpe, segundo o Kremlin), o oligarca conhecido como “Rei do Chocolate” assinou o acordo de associação UE-Ucrânia - o documento que levou, em última análise, à queda do antecessor, Yanukovich -, e tentou lançar reformas. Mas teve de lidar com a anexação da Crimeia e o início da guerra no Donbass, bem como os sabotados Acordos de Minsk, que previam o cessar-fogo entre as forças pró-russas e as tropas de Kiev. Derrotado por Zelensky com números estrondosos (74,9%-25%), Poroshenko, de 60 anos, manteve-se como voz da oposição e mostra interesse em recandidatar-se. Mas tem à perna a Justiça: desde a saída do poder foram abertos mais de 20 casos contra si. Há dias, Zelensky assinou um decreto a impor sanções a cinco oligarcas, ex-presidente incluído. Acusado de “alta traição”, tem os seus bens congelados.

Serhiy Prytula

Tal como Zelensky, tornou-se conhecido como personalidade da TV (no caso apresentador e ator), e também entrou na política. Mas as semelhanças ficam-se por aí. A sua experiência na política foi discreta: candidato pelo partido liberal Holos às legislativas de 2019, falhou a eleição; meses depois concorreu à Câmara de Kiev, tendo ficado em terceiro. Com a invasão russa criou uma fundação para recolher fundos para as forças ucranianas, incluindo a aquisição dos drones turcos Bayraktar. Apesar de as sondagens não lhe serem favoráveis em caso de candidatura à presidência, Prytula, de 43 anos, gozava de elevada percentagem de confiança dos compatriotas.

Kyrilo Budanov

Quantos chefes dos serviços de informações gozam de popularidade e reconhecimento durante o seu mandato? Poucos, decerto. Antigo paraquedista, Budanov, de 40 anos, ganhou um perfil de lenda viva, primeiro devido à coragem demonstrada em ação militar (ferido três vezes em batalha) e desde que dirige o GUR, a secreta militar, de há cinco anos para cá, com ações ousadas e espetaculares, tal como as declarações públicas. Há dias, disse que a Rússia precisa de um cessar-fogo porque a sua produção atingiu um pico. Moscovo chegou a anunciar a sua morte, em 2023, quando o quartel-general do GUR foi atingido. A sua mulher foi envenenada, mas sobreviveu. Devido ao apelido e à aparente serenidade, é comparado a Buda.

Yuriy Boyko

Ex-ministro da Energia e antigo vice-primeiro-ministro, é considerado um microfone da propaganda russa, ao ponto de o seu partido, Plataforma da Oposição - Pela Vida, ter sido ilegalizado pelo Supremo Tribunal. É um tema que não o deixava à vontade: em 2016, ao ser apelidado de “agente do Kremlin” num debate televisivo, reagiu a soco. Criou entretanto a Plataforma pela Vida e Paz, onde reverteu algumas das suas posições pró-russas e chegou a chamar “criminoso de guerra” a Putin. Tal como Poroshenko, a sua fortuna está congelada por sanções aplicadas pelo presidente. Foi candidato em 2014 e 2019, sem sucesso. Neste último ano, visitou Moscovo, onde foi recebido pelo ex-presidente Medvedev. “Este é um partido russo com assento no Parlamento ucraniano”, disse o observador político Mykola Davydiuk ao Kyiv Independent.

Dmytro Razumkov

Filho de um proeminente politólogo e assessor do presidente Kuchma, este consultor político de 41 anos organizou a campanha vencedora de Zelensky. Mais tarde foi eleito líder do partido Servo do Povo, do presidente, e obteve nova vitória esmagadora, agora nas Eleições Legislativas, onde pela primeira vez um partido alcançou a maioria absoluta. Razumkov tornou-se a segunda figura do Estado. A sua divergência com Zelensky começou nas reuniões do Conselho de Segurança e Defesa e culminou com um braço de ferro sobre legislação para limitar os poderes dos oligarcas: acabou destituído em 2021, ano em que anunciou a sua candidatura à Presidência.

Yulia Tymoshenko

Em 2014, depois de seguir o processo que levou a então candidata presidencial derrotada em 2010 à prisão, o jornalista italiano Matteo Cazzulani escreveu Ucraina, gas e manette (Ucrânia, gás e algemas). No livro, o autor traça um paralelo entre a Ucrânia e a política, ambas privadas de liberdade devido à corrupção e à dependência da energia russa. Antes de se tornar a primeira mulher chefe de governo no país (em 2005 e depois entre 2007 e 2010), Tymoshenko e o marido terão enriquecido precisamente a importar os hidrocarbonetos russos, conhecimentos que usou como vice-PM para a Energia (1999-2001). Figura de proa da Revolução Laranja, voltou a concorrer em 2014 e 2019. A deputada de 68 anos tentará uma quarta vez?

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