Ensaio de Helena Ferro de Gouveia: A Europa electrizada a olhar para Berlim

Ensaio de Helena Ferro de Gouveia: A Europa electrizada a olhar para Berlim

Um ensaio de Helena Ferro de Gouveia, analista de Assuntos Internacionais e antiga correspondente na Alemanha
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As Legislativas de 23 de fevereiro na Alemanha são as mais relevantes das últimas décadas, não apenas para os alemães. Estando a Europa a enfrentar a maior crise de segurança desde 1945 e ainda em estado de choque com as primeiras semanas da nova Administração norte-americana, o voto da Alemanha irá repercutir-se muito para além das suas fronteiras.
Sendo a maior economia da União Europeia, ainda que em recessão, e o mais populoso estado-membro dos 27, o que acontece em Berlim não ficará em Berlim. A Europa espera sobretudo que a Alemanha confronte o populismo e regresse à estabilidade política.

O vazio de poder em Berlim não podia ter acontecido na pior altura possível: literalmente no dia seguinte à eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. “Podemos ver que estamos no meio de uma tempestade geopolítica, comercial e económica... Não temos uma voz alemã e isso é um problema a nível europeu”, salienta Yann Wernert, investigador do Instituto Jacques Delors, em Berlim. Guerra tarifária, disputa pelo Ártico, o fim do conflito entre Israel e o Hamas, a recente aproximação entre Washington e Moscovo, as tensões atlânticas são questões importantes que tornam urgente o restabelecimento da estabilidade política na Alemanha.

No prólogo do seu livro de memórias, Liberdade, Angela Merkel - que muitos na Alemanha responsabilizam pela deterioração da coesão social e de alguma maneira pelo conflito na Ucrânia - salienta que “esta não é uma obra sobre a Rússia e a Ucrânia”; todavia ocupa muitas páginas a justificar a sua Ostpolitik. O historiador britânico Timothy Garton Ash fala da mágoa de Merkel “com a provocação do Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, a 3 de abril de 2022, de que ela e o antigo Presidente francês Nicolas Sarkozy deveriam ir ao local do massacre russo em Bucha, “para verem a que conduziu a política de concessões à Rússia em 14 anos”. Merkel faz uma longa defesa da forma como bloqueou a proposta dos Estados Unidos de permitir à Ucrânia que desse os primeiros passos no longo caminho da adesão à NATO, na cimeira da aliança em Bucareste, em 2008”. Em vez disso, os líderes do Atlântico Norte acordaram uma fórmula de compromisso de acordo com a qual a Ucrânia e a Geórgia “tornar-se-ão membros da NATO”, mas sem especificar como ou quando.

“Não havia outra opção senão chegar a um compromisso”, escreveu a antiga chanceler, embora sem reconhecer que este merkelianismo característico levou ao pior dos dois mundos não aumentando a segurança da Ucrânia, e dando à Rússia argumentos para brandir uma, falsa, sensação de ameaça. Com os anteriores chanceleres alemães Angela Merkel partilha uma mescla de fascínio e medo da Rússia. Quem lê nas entrelinhas dos discursos de Olaf Scholz, o ainda chanceler, encontra neles este receio visceral tão enraizado e tão alemão: o medo das ogivas nucleares russas. Medo habilmente explorado por Vladimir Putin e que esteve presente na campanha eleitoral social-democrata.

A contenção de Olaf Scholz teve o efeito perverso de aumentar a probabilidade de proliferação nuclear, veja-se o exemplo de Varsóvia que pensa com muita seriedade sobre esta questão.

Socialistas em risco de implosão

O partido socialista alemão, SPD, prepara-se para registar o pior resultado eleitoral da sua história. Nos estados do leste alemão deixou de poder ser descrito como um grande partido popular. Nunca um chanceler alemão foi tão impopular como Olaf Scholz, nem mesmo Gerhad Schroeder que fez um pacto faustiano com o diabo tornando-se num dos melhores aliados do Kremlin.

Dizem os analistas alemães que Scholz não trouxe pouco para esta campanha eleitoral, pelo contrário trouxe uma bagagem demasiado pesada. Demasiados números económicos negativos, uma linha demasiado sinuosa no tocante à guerra na Ucrânia e à imigração.

Depois do atentado de Aschaffenburg, o chanceler anunciou consequências, que nunca se concretizaram. O seu partido também não o permitiria.

Teria Boris Pistorius, o ministro da Defesa e mais popular político alemão, querido e podido ir mais longe? A resposta de Pistorius ao vice-presidente americano J. D. Vance deu-nos uma ideia de como poderia ter soado um novo tom. Foi Pistorius quem confrontou Vance na Conferência de Segurança de Munique.

Quando J.D. Vance criticou os seus anfitriões alemães por “terem posto de lado os partidos de extrema-direita”, não mencionou o nome da Alternativa para a Alemanha, conhecida como AfD. Mas pouco depois do seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, em que surpreendeu a sala ao comparar a democracia na Europa atual com o totalitarismo da era soviética, Vance encontrou-se com Alice Weidel, a líder da AfD, ex-analista de investimentos que está a criar dois filhos com a mulher, nascida no Sri Lanka, na Suíça. O seu partido nacionalista faz campanha com uma plataforma anti-imigração e define a família como um pai e uma mãe que criam os filhos. A candidata favorita da nova Administração americana - tendo recebido o apoio de Elon Musk - tem sido essencial para os esforços do AfD para entrar na corrente dominante, ajudando a colocar o partido num confortável segundo lugar antes das eleições nacionais de domingo.

Teria sido diferente com Boris Pistorius? Esta será a pergunta crucial na noite das eleições, a partir das 18h01m. E, precisamente porque nunca poderá ser respondida com certeza, é provável que provoque alguma agitação no SPD. Ou mesmo uma implosão.

Democratas-cristãos perto da vitória

As sondagens, que se têm mantido estáveis, dão a vitória aos democratas-cristãos liderados por Friedrich Merz, não será, todavia, fácil a formação de uma coligação governamental. Após anos de crescimento económico estagnado ou em queda, as perspectivas para a economia alemã em 2025 são, na melhor das hipóteses, anémicas. Por isso, a CDU/CSU e os liberais do FDP - que seriam o parceiro natural de coligação dos conservadores mas correm o risco de ficar fora do Bundestag - fizeram campanha com base num programa de relançamento da economia alemã. As infra-estruturas públicas da Alemanha foram negligenciadas durante décadas, o que levou ao desmoronamento de pontes, a uma rede eléctrica obsoleta e a atrasos significativos nos comboios de passageiros. Sem um investimento significativo, os economistas advertem que o país perderá competitividade.

Os partidos com maior probabilidade de fazer parte da coligação - SPD, Verdes e Liberais - estão unidos no seu compromisso com as políticas externa e de segurança ocidentais, em contraste com a AfD e a BSW.

Há unanimidade no espectro político alemão na afirmação de que nunca se associariam ao partido de Alice Weidel para formar um governo. Todavia o processo de normalização da AfD parece estar em curso. Weidel foi bem-sucedida em apresentar a AfD como apenas “mais um partido” quando participou num debate televisivo com os seus principais rivais, que também incluíam Robert Habeck, candidato dos Verdes.

A prestação de Alice Weidel foi considerada má, mas, mesmo assim alertam os analistas, saiu do evento vencedora - foi a primeira vez que a AfD foi convidada para um debate deste tipo, assistido por milhões de eleitores.

“O governo que emergir em Berlim é o primeiro, mas apenas o primeiro, teste para saber se o modelo europeu de mudança através do consenso democrático pode dar resultados. Se a democracia não for eficaz, os jovens europeus procurarão modelos alternativos”, Timothy Garton Ash escreveu isto em 2021. Não perdeu nada em actualidade. Continuará a democracia a ser um modelo atrativo para os eleitores? Sairá das urnas a tão necessária estabilidade para a Alemanha e a Europa?

É sempre bom recordar à Europa e aos alemães duas frases do primeiro chanceler pós-guerra, Konrad Adenauer: “Paz sem liberdade não é paz!”, dita no Discurso de Natal, transmitido pelas estações de rádio alemãs, a 25 de dezembro de 1952, e “ A liberdade compromete. Interiormente, só existe um caminho para nós: o do Estado de direito, da democracia e da justiça social. Só há um lugar para nós no mundo: ao lado dos povos livres”, dita em 1955.

Perguntas & Respostas

Quais são os principais partidos que concorrem a estas eleições?

Os partidos que concorrem às Legislativas alemãs são, da esquerda para a direita do espetro político, os seguintes: Linke (extrema-esquerda), SPD (social-democratas), Verdes, FPD (liberais), CDU/CSU (democratas-cristãos), AfD (extrema-direita/populista).

Há ainda o Bündnis Sahra Wagenknecht (BSW), mas este partido unipessoal não é fácil de enquadrar nas habituais categorias esquerda-direita. O BSW tem posições de extrema-esquerda em questões de política económica, de esquerda em matéria de política social, mas também é anti-imigração e opõe-se às sanções contra a Rússia e ao apoio militar à Ucrânia, sendo nestes tópicos uma espécie de clone da AfD.

Quando é que saberemos os resultados eleitorais?

Serão necessários vários dias após 23 de fevereiro para confirmar os resultados finais das eleições. Com base nas sondagens à boca das urnas, haverá resultados bastante fiáveis na noite eleitoral, mas poderá haver ainda alguma incerteza. A incerteza dever-se-á ao número de pessoas que votam por correspondência (uma tendência que está a aumentar) e do desempenho dos partidos mais pequenos, que poderão ou não ficar abaixo dos 5%, limiar para a entrada no Bundestag, o que terá um impacto na composição global do hemiciclo e na distribuição de lugares entre os partidos no Parlamento. De acordo com a lei eleitoral os partidos que ganharem pelo menos três círculos eleitorais (cláusula de mandato básico) qualificam-se para o Bundestag e obtêm lugares de acordo com a sua quota de votos partidários.

De novo uma coligação?

Nenhum partido terá assentos suficientes para formar um governo sozinho, uma vez que o sistema eleitoral alemão torna quase impossível fazê-lo. Ao contrário dos países nórdicos, a Alemanha não tem uma tradição de governos minoritários, uma vez que estes são considerados demasiado fracos e instáveis. Os alemães preferem governos que sejam apoiados por uma maioria clara no Bundestag.

Em parte, é cultura política preferir maiorias estáveis e dar ênfase ao compromisso.

Até o início da década de 1980, geralmente três partidos (conservadores, social-democratas e liberais) tinham assento no Bundestag, em 2021 entraram 7 partidos para o Parlamento.

A Alemanha tem um sistema eleitoral híbrido, no qual os eleitores dispõem de 2 votos. Um num candidato que representa um círculo eleitoral e um segundo na lista de candidatos de um determinado partido num Estado federal. Apenas os partidos que obtêm 5% do segundo voto podem entrar no Parlamento.

Desde que as eleições de 2021 produziram um Bundestag “inchado” com 735 lugares, um dos maiores parlamentos do mundo, a lei eleitoral foi revista entretanto após uma decisão do tribunal superior do país e entrou em vigor limitando o tamanho do Parlamento a 630 lugares.

Poderá a AfD entrar no governo?

Não, pelo menos, não nestas eleições. Existe aquilo a que os alemães chamam um Brandmauer, o que significa que, até à data, nenhum dos outros partidos está disposto a formar governo com o AfD. O parceiro mais provável seriam os democratas-cristãos. Todavia Friedrich Merz, com grande probabilidade o futuro chanceler, recusou liminarmente essa possibilidade.

No entanto, já existe um nível de cooperação entre a AfD e outros partidos a nível local e mesmo em alguns Parlamentos estaduais, especialmente nos Länder (estados) da Alemanha de Leste. Muitas vezes, os novos modelos de formação de coligações são experimentados nos Parlamentos dos Länder e, mais tarde, servem de modelo para o nível federal.

A AfD espera que seja esse o seu caso.

Analista de assuntos internacionais e antiga correspondente na Alemanha

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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