Guru do governo Lula é uma economista portuguesa de 93 anos
Entrevistada na televisão por Jô Soares, algures nos anos 80, Maria da Conceição Tavares contesta, veemente, como quase sempre, o "convite", feito ao vivo pelo humorista, para assumir a pasta das finanças do governo brasileiro então liderado por José Sarney. "Não, é um cargo horrível e eu, com este temperamento, não o poderia ter, o que eu quero é ser a presidente do Banco Central, ter a chave do cofre, porque só têm nomeado para esse cargo gente ligada aos bandidos", responde a economista, hoje com 93 anos, de cigarro na mão e um forte sotaque português, de Portugal, já influenciado pelo acento carioca.
O vídeo, por ser considerado cirurgicamente atual num momento em que o presidente Lula da Silva vem criticando o titular do Banco Central, o simpatizante bolsonarista Roberto Campos Neto, por causa da taxa de juros a 13,5%, é um, entre dezenas de outros da economista, a correr desenfreado na internet por estes dias.
No Twitter, a página "Acervo de Maria da Conceição Tavares", gerida por um estudante de direito de 21 anos, tem mais de 60 mil seguidores, e a quase homónima "acervo maria da conceição tavares", criada por uma estudante de ciências sociais e cantora, quase 50 mil. No TikTok, trechos de aulas da portuguesa de voz rouca são transformados em memes partilhados à exaustão. Repetem-se as "fancam", vídeos que reúnem imagens de alguém famoso ao som de canções, dedicadas à economista pelas redes. E os vídeos de aulas dela do Instituto de Economia da Universidade de Campinas, onde lecionou, são os mais visualizados da instituição.
Mas Conceição, como os amigos a tratam, é muito mais do que um produto pop recentemente descoberto por jovens de esquerda fascinados com a contundência do seu discurso, o colorido das suas metáforas e, muitas vezes, os palavrões que ela não se preocupava em conter, nas aulas e nas entrevistas, como naquela a Jô Soares.
"Ela escreveu textos seminais da economia brasileira", diz ao DN o economista e professor Luiz Gonzaga Belluzzo, conhecido no Brasil também por ter sido presidente do Palmeiras, de 2009 a 2011. "Hoje tornou-se muito popular porque a juventude descobriu na internet vídeos de aulas dela, além de entrevistas, e ela era muito singular nas suas exposições, falava com paixão, criava imagens engraçadas".
"Ela foi assistente de Otávio de Bulhões na faculdade de economia da Universidade do Brasil, conviveu com economistas de relevo, tanto à esquerda, como Celso Furtado, como conservadores, como Roberto Campos [por curiosidade, o avô do atual presidente do Banco Central], e escreveu textos fundamentais para o debate económico brasileiro", prossegue Belluzzo. "Escreveu sobre desenvolvimentismo, durante os anos dourados do governo de Juscelino Kubitschek e depois sob João Goulart, até ser apanhada pelo golpe militar de 1964 e ver a sua atividade, como todos os economistas de esquerda da época, ser muito limitada".
"Embora ela continuasse protestando, acabaria por ir para o Chile [onde trabalhou no governo de Salvador Allende] até voltar para a Universidade de Campinas, onde tive a honra de partilhar com ela uns 20 artigos, que deram reputação à chamada "Escola de Campinas"".
Maria da Conceição Almeida Tavares nasceu em Anadia, em 1930, cresceu em Lisboa, numa casa em que os pais acolhiam refugiados da Guerra Civil espanhola, estudou matemática e química e, com o primeiro marido, grávida da filha Laura (mais tarde nasceria Bruno), emigrou em 1954 para o Brasil, fugida do regime de Salazar.
Para Glória Moraes, economista e professora universitária, "a Conceição é uma bênção". "Ela foi minha professora de economia, um dia apresentei um trabalho de grupo sobre [George] Marshall, ela não gostou, quis que eu interrompesse a leitura mas eu insisti que ia até ao fim e foi nesse clima de tensão que ficámos próximas", ri-se a ex-aluna. "Hoje, com 70 anos, a minha relação com ela, de 93, vai muito além da de professora-aluna, somos tão íntimas que tenho até foto dela com o Lula na parede de casa".
"Ela foi essencial no "Movimento de Renovação de Economistas no Rio de Janeiro", um movimento que se opunha à ditadura militar, ela era a presidente e a estrela, toda a nossa geração foi muito marcada por ela e as obras dela são muito atuais, quando ninguém falava em capitalismo financeiro, ela já estava de olho na retomada da hegemonia dos americanos sobre o dólar e escreveu um artigo académico sobre o tema que é um marco". "Mas além dos trabalhos académicos, economistas e não economistas esperavam ansiosamente os artigos dela no jornal Folha de S. Paulo, pouca gente consegue isso, economistas menos ainda", conta Glória.
Paradoxalmente, no momento em que a sua popularidade explodiu, graças à internet, Conceição deixou de ser presença habitual dos meios de comunicação social, por culpa da idade. Recolheu-se em Nova Friburgo, na região serrana do Rio, onde vive serenamente na companhia da filha Laura e é visitada pelo filho Bruno, a nora, o neto, o bisneto e uma mar de amigos e admiradores mas sem, para seu desgosto, o inseparável cigarro, por inegociável ordem médica. "E as nossas visitas têm de ser curtas porque ela está idosa, debilitada, cansa-se facilmente, no dia 24, porém, liguei-lhe, claro, era o aniversário dela", conta Glória.
Ter nascido a 24 de abril, véspera da revolução do país natal, é visto como uma ironia na vida de uma mulher que fugiu da ditadura portuguesa para ser presa no Brasil em 1974, outra ironia. Foi libertada após alguns dias por ordem do próprio presidente Ernesto Geisel, a pedido de Mário Henrique Simonsen, então ministro das Finanças. "Olá, Mário, tudo bem? Nem vou agradecer porque você não fez nada mais do que sua obrigação", escreveu-lhe, ao seu estilo, Conceição.
A economista, entretanto, já era um fenómeno mediático mesmo antes da internet, como prova a personagem "Maria da Recessão Colares", criada em sua homenagem pelo humorista Chico Anysio para o programa A Escolinha do Professor Raimundo. Por esse tempo, um jovem Fernando Haddad, hoje ministro da Fazenda, era ávido leitor dos seus artigos, assim como Nelson Barbosa, Guilherme Mello ou Laura Carvalho, os principais economistas do país na órbita do PT, que se referem a ela como "mestra" ou "guru".
Lula, por sua vez, é assumido admirador de Conceição, com quem se reunia habitualmente para discutir economia e política, desde os tempos de sindicalista e deputado. "Ele é um génio do povo", costuma dizer a economista, militante do PT e ex-parlamentar do partido, sobre o hoje presidente.
Em 2010, Conceição apoiou a eleição Dilma Rousseff, "uma mulher estupidamente inteligente e de coração aberto", mas foi fotografada entre ela e o concorrente José Serra, do rival PSDB, por ele também ter sido seu ex-aluno e discípulo.
"Eu li quase todos os textos que ela escreveu. Eu posso ter discordado dela mais de uma vez mas tenho que reconhecer que ela foi uma grande idealista", disse Fernando Henrique Cardoso sobre Conceição.
Apesar de envolvida visceralmente na atualidade do país de adoção, Portugal não é apenas uma vaga memória na vida de Conceição. "Em 1994 estivemos juntas lá, muitos lugares tinham ainda um impacto forte sobre ela, ela falava muito no pai, no tio, em Anadia, onde nasceu, e em Lisboa, onde estudou química e matemática", diz a amiga Glória. "Por outro lado, falava às vezes do Salazar e comparava as ditaduras, de lá e de cá, lembrava que a portuguesa foi mais longa, mais pesada, mais triste, na nossa, as pessoas, apesar de tudo, reuniam-se mais, festejavam mais, havia mais afetos, notava ela".
Quando completou 80 anos não se ouviu o "Parabéns a Você" na festa mas o "Grândola, Vila Morena". E a vitória de Lula, dizem os amigos, animou-a porque receava ter nascido sob Salazar e vir a morrer sob Bolsonaro.
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