Na linha da frente, Sofia prestou primeiros socorros psicológicos

Sofia Pais fez parte de uma equipa de psicólogos que se voluntariaram para o Acalma, uma plataforma online pensada para os cuidados de saúde mental durante o confinamento.
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Com a pandemia a forçar o governo a decretar o estado de emergência, em meados de março, a clausura evitou a propagação em massa do novo coronavírus, mas trouxe outras consequências. Foi a pensar em específico nas sequelas da saúde mental que foi criado um modelo de intervenção em crise, o Acalma.online, que chegou agora ao fim com um histórico de 2005 consultas virtuais distribuídas por cem psicólogos que se voluntariaram.

Durante seis anos, Sofia Pais integrou uma equipa de medicina do trabalho numa petrolífera em Angola como coordenadora de um observatório de stress, o que incluía trabalho nas plataformas offshore. "Uma experiência incrível", comenta. Quando regressou a Portugal há menos de dois anos, a psicóloga clínica trazia na bagagem a experiência em cenários de crise.

Quando foi dado o toque de recolha e as pessoas tiveram de se adaptar a uma nova realidade, também os psicólogos foram chamados à ação. "Senti que tinha de estar na linha da frente. Tinha todas as técnicas, portanto tinha de ajudar. E queria fazer parte de um projeto que fosse coerente e que transmitisse segurança", diz.

"Nasceram montes de projetos mas nenhum deles me dava segurança para representá-lo. Quando li o objetivo do Acalma identifiquei-me logo", afiança Sofia Pais. Os profissionais selecionados receberam uma formação, também ela à distância, para um alinhamento "no mesmo sentido, a intervenção em crise". Isto porque, reconhece, "a tendência natural enquanto psicólogos e psicoterapeutas é ter uma intervenção psicoterapêutica, mas aqui o objetivo não era esse, era fazer uma intervenção em crise", ou seja, "os primeiros socorros psicológicos", nos quais destaca a importância de saber ouvir o outro e de "respeitar o silêncio".

No Acalma.online qualquer pessoa com ligação à internet podia marcar uma consulta em videochamada, gratuita, escolhendo o psicólogo após consultar os perfis dos voluntários.

Durante as consultas, com a duração de 45 minutos, os psicólogos tinham como meta prestar um alívio terapêutico. Quando a situação era mais complexa, o utente era reencaminhado para outro profissional de saúde ou para um colega que faça psicoterapia online.

"De uma forma geral, apareceu-nos quase todo o tipo de pessoas", diz a psicóloga natural de Setúbal. "Pessoas que não tinham qualquer tipo de patologia mas que se viram invadidas por estes tempos estranhos, que nunca tinham sentido nada de ansiedade, de episódios depressivos, alterações de sono ou de alimentação e queriam apenas validar que o que estavam a sentir era adequado à situação de incerteza. E, depois, pessoas que já tinham patologias e em que o confinamento veio aumentar a sua dimensão", descreve.

Dos inquéritos preenchidos pelos utilizadores, estes descreveram que sofriam de ansiedade (17%), preocupação com o futuro (17%), isolamento (15%), tristeza (15%) e dificuldades de adaptação ao contexto profissional (14%). Quanto ao grau dos sintomas, a maioria dos inquiridos (62,7%) disse ser moderado, enquanto 24,6% acreditavam ser grave. Por fim, uma larguíssima maioria (83%) afirmou que o Acalma.online teve um impacto positivo.

Os créditos da criação de uma plataforma solidária de apoio psicológico, que entretanto chegou ao fim, devem-se à Casa do Impacto, uma rede de empreendedorismo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, tendo reunido as startups ZenKlub, Doctorino e Hug-a-Group e o apoio das empresas WithCompany e DoctorSpin.

Sofia Pais, que exerceu a maior parte da vida profissional de 18 anos num hospital privado enquanto foi enriquecendo as habilitações com pós-graduações, mestrado e nova licenciatura, desta vez em Gestão, olha para a fase do desconfinamento com preocupação. "Vamos continuar ainda com mais incerteza, temos pessoas com medo de regressar ao emprego, receio de se cruzarem com pessoas", muitas das quais não têm outra opção que não seja utilizar transportes públicos e, como tal, usar máscara, que é outra situação digna de nota.

"Vamos ver como lidam pessoas despreocupadas ou aparentemente despreocupadas com o facto de usar máscara. Porque isto é uma mudança de comportamento radical. A máscara é uma despersonalização. Não vemos a cara, vemos parte dos olhos. Nós somos culturalmente de afetos, de cumprimentos. Para nós, não há distâncias. Tudo isto, a aquisição de novos comportamentos vai demorar algum tempo e vai ficar na nossa memória", afirma.

"Está tudo por fazer", conclui.

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