Este centro sinaliza a solidão e dá-lhe ferramentas de trabalho para a mão

Com vista para a casa onde políticos decidem o rumo do país, o Centro de Apoio Social de São Bento decidiu dar um rumo à vida de pessoas sem-abrigo ou em situação de vulnerabilidade e sós. Num ateliê a construir bonecas ou na cozinha, estas pessoas ganharam um trabalho e uma forma de ocupar o tempo.
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"As saudades que eu já tinha da minha alegre casinha." A música ecoa do pequeno rádio antigo e preto pousado no cimo de um armário, até à porta da entrada. Muitos dos homens e mulheres que aqui se sentam, neste ateliê, não têm uma casa para sentir a saudade que os Xutos & Pontapés cantam, perderam a sua e estão agora integrados numa unidade de emergência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). Mas encontraram debaixo deste teto a possibilidade de um recomeço, através da criação de artesanato ou da confeção de refeições. Uma forma de ocupar o tempo e, quem sabe, encontrar o trampolim para o mercado de trabalho.

Estamos no Centro de Apoio Social de São Bento, à guarda da SCML, um edifício amarelo com vista para a Assembleia da República, onde o país se decide. Deste lado da rua, a temática é outra. No rés-do-chão ou no primeiro andar, pouco ou nada se fala de política. Pinta-se, recorta-se, cola-se, criam-se coisas. Bonecos, adereços, quadros, o que a imaginação permitir. No mesmo primeiro andar, dá-se também corda à colher de pau, mexe-se o chili com carne do dia, serve-se às mesas e faz-se a limpeza da cozinha. Atividades familiares no espaço que em tempos já foi uma cozinha económica e, mais tarde, uma carpintaria.

Contudo, para grande parte destes utentes, nenhuma destas artes estava no currículo. "Algumas [pessoas] já têm algumas experiências, outras são todas novas", explica Ana Zagallo, diretora do centro, onde trabalha há 23 anos. Em comum, têm todos a solidão, diz. "São pessoas sós." Além da necessidade de "uma determinada direção na vida".

Atualmente, 50 utentes passam aqui os seus dias. Destes, 40 estão dedicados ao artesanato e dez à cozinha. O papel deste espaço começa na sinalização de pessoas sem-abrigo ou em situação de vulnerabilidade, através das unidades de emergência ou da Unidade de Desenvolvimento de Intervenção de Proximidade. Os candidatos são posteriormente submetidos a uma entrevista e, consoante as vagas, colocados ou "em lista de espera para uma próxima oportunidade".

Quando o relógio bate as nove horas da manhã, as portas dos ateliês de artesanato abrem-se e todos voltam aos seus postos. Até ao meio dia, hora de almoço, trabalham sem interrupção. Entretanto, ao meio dia já a equipa da cozinha preparou as refeições e prepara-se para as distribuir. Os artesãos retomam às 13 horas e seguem até às 16 horas. Os cozinheiros limpam a cozinha.

O trabalho de produção de artesanato é feito em linha de montagem. A cada mesa, a sua tarefa. Uma boneca nunca é só de um autor e terá de passar por várias mãos antes de estar pronta. Num canto do rés-do-chão, sentado diante de uma mesa de madeira maciça, um homem além dos 60 anos segura com uma mão e pressiona contra o abdómen uma esfera coberta de tiras de jornal. Agarra num pedaço de papel, milimetricamente cortado, pousa-o sobre uma placa de madeira, molha o dedo da mão direita num recipiente com cola líquida e leva o mesmo dedo à tira de jornal, para o cobrir com a cola e espalhá-lo na esfera. A alguns metros, um outro utente limava peças de madeira na ponta da mesa. Dali, nasceria uma obra que, em condições habituais, fora do contexto epidémico, estaria exposta para venda ao público na entrada do centro. No ar permanece o cheiro a almoço e o ruído das panelas a trabalhar.

Da dedicação que dão ao trabalho que aqui exercem podem esperar em troca uma compensação monetária, além de um subsídio de refeição. A ideia é que todos os utentes sintam a responsabilidade das suas funções e sejam reprogramados para o mercado de trabalho. "Ou seja, se eles faltarem injustificadamente, são penalizados na compensação que lhes é atribuída. O dia é descontado como se fosse um trabalho normal. Por aí, nós trabalhamos esse sentido de responsabilidade, ao fim ao cabo, que é o ter-se o emprego", esclarece Ana Zagallo.

"Não é nascer outra vez", diz a diretora, mas "iniciar um percurso" que de outra forma continuaria a desaguar na solidão. Neste centro, cada um dos utentes é convidado a reaprender a viver em comunidade. "Essencialmente, as pessoas que nos chegam são desempregadas de longa duração e já perderam muito os hábitos de trabalho que tinham." Algumas delas com diagnósticos psicológicos complexos. "Tenho de dizer que 70% da população que utiliza este equipamento tem problemas de saúde mental e também física." Por isso, torna-se uma missão encontrar espaço para elas nas empresas e nos serviços. E admite que chega a ser "exaustivo" o trabalho de aprendizagem de rotinas, "hábitos de trabalho, de cumprimento de horários, de manter um alojamento em condições".

No final, "os trabalhos que eles fazem são importantes, sim, porque permite que vejam a [sua] utilidade", mas Ana Zagallo lembra que a vitória está no dia em que ganham métodos de trabalho. É para isso que este centro abre todos os dias, e os resultados já estão a olho nu: "Temos uma média de 15 entradas por ano - correspondentes a saídas - e posso dizer que, por exemplo, no ano passado, 23% das pessoas que saíram foram integradas no mercado de trabalho."

Até lá chegarem, às estatísticas positivas, continuam a ouvir entre estas paredes a história cantada "da casinha" que deixa saudade e que sonham, um dia, ter.

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