Radares para escutar e cuidar de idosos isolados

Equipas de rua vão de casa em casa dos lisboetas com mais de 65 anos e que vivem sozinhos para perceber que dificuldades enfrentam e de que ajudas precisam.
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André Viana trocou há pouco tempo uma unidade de cuidados continuados pelo trabalho na rua, junto da comunidade. Formado em Terapia Ocupacional, é um dos técnicos da Santa Casa que atualmente fazem entrevistas porta-a-porta para o Projeto Radar. Uma iniciativa que pretende apoiar a população idosa de Lisboa - e serão cerca de 35 mil os que vivem sozinhos -, criando radares de alerta. Desde entrevistadores como André até pessoas na comunidade que possam estar atentas e sinalizar idosos em risco de isolamento, como é o caso de José Ramos. Pelo meio, o Radar conta ainda com o apoio da PSP para as visitas a casa dos idosos.

"Sendo um trabalho porta-a-porta nunca sabemos quem é que vamos encontrar do outro lado, mas no geral, a reação da população tem sido bastante boa, têm-nos recebido bastante bem", aponta André Viana. Na Freguesia de São Domingos de Benfica, uma das 13 freguesias onde o Radar está presente, as equipas têm encontrado pessoas ainda bastante autónomas, mas também já se cruzaram com situações que são as prioridades do projeto. Uma população que há dez ou 20 anos não sai do seu andar, porque não há elevador, ou porque no prédio já não residem vizinhos que faziam parte da sua rede social, ou simplesmente porque já não têm família.

A primeira abordagem é falar, escutar e depois "cuidar da pessoa". "Procuramos respostas de acordo com as necessidades de cada um", sublinha o técnico. E que podem ser muito variadas.

André já se cruzou com "situações extremas como casos de violência doméstica, ou pessoas que não saem de casa há bastante tempo porque não têm como o fazer, pessoas que não têm dinheiro para a alimentação, para cuidados de higiene, e que não têm como pedir ajuda aos serviços ou não sabem como o podem fazer".

Para identificar estes casos, os técnicos fazem uma entrevista aos idosos que visitam. Estes recebem depois uma chamada de um técnico da Santa Casa para validar a entrevista e para perceber mais aprofundadamente se a pessoa necessita de algum tipo de resposta, e é aí que é reencaminhada para os serviços. Se não precisar, é-lhe atribuído um contacto telefónico para onde pode ligar sempre que precisar de ajuda.

Pela visita a casa destes idosos, as equipas Radar percebem que muitos deles referem como dificuldades a execução de tarefas do dia-a-dia. "A questão da higiene pessoal, limpeza da casa ou confeção das refeições" são, segundo André Viana, as dificuldades mais frequentes.

As questões das dificuldades são contrapostas com as perguntas sobre expectativas e sonhos que estes idosos ainda têm por cumprir. E aqui as respostas surpreendem: "A maioria refere que gostaria de viajar, passear, ter saúde e é curioso ver pessoas com mais de 90 anos ainda a quererem ajudar o outro e muitas fazem ainda voluntariado", refere o técnico da Santa Casa.

Fardas da PSP ajudam a abrir portas

Muitas destas respostas só são possíveis porque a acompanhar os técnicos de colete vermelho estão agentes de farda azul-celeste. A PSP associou-se às equipas Radar para que as pessoas visitadas se sintam mais seguras.

"Claro que devido às constantes burlas que existem as pessoas são mais reticentes, às vezes, a abrir a porta. Daí a importância fulcral do acompanhamento da PSP para transmitir segurança à população", admite André Viana.

"Sem dúvida nenhuma os polícias da Polícia de Segurança Pública têm um papel fundamental na ponte entre os radares e a população idosa. Uma vez que há sempre uma desconfiança por quem bate à porta. Tendo em conta que quando veem um polícia fardado sentem logo uma maior confiança em ceder certos dados, uma vez que até já conhecem muitos dos polícias", sublinha Carina Alves, subcomissária da PSP e comandante da 21.ª esquadra.

É o caso de Edgar ou de La Salette que abriram as portas da sua casa sem receios porque perceberam que estavam em segurança. Apesar de não precisarem de nenhum apoio específico por ainda se encontrarem autónomos e terem família que os pode apoiar, os dois entrevistados mostram-se a favor deste tipo de iniciativas. Estavam sinalizados para visita por terem mais de 65 anos e viverem sozinhos, no entanto, eles próprios assumem que estão atentos a vizinhos ou a pessoas da mesma idade que possam estar a precisar de apoio.

Colocar os radares na comunidade

Quem também já se constituiu como um radar na comunidade foi José Ramos. Já que "o objetivo do Radar é que haja continuidade. Ou seja, que cada pessoa seja um radar. Esta sensibilização de um olhar ativo da população, em que cada um pode fazer a diferença na vida de outra pessoa, identificando e tentado ajudar", explica André Viana.

Foi com esse espírito que José Ramos aceitou ser Radar na zona de São Domingos de Benfica. "Temos de ter a capacidade de perceber se eles precisam de ser indicados aos serviços que lhe possam prestar assistência", descreve. O agente imobiliário reconhece que "há situações que precisam de ser detetadas e acompanhadas. Acho que é uma grande mais-valia e um progresso para a nossa sociedade".

No seu papel de Radar, José Ramos já abordou pessoas que considera poderem vir a precisar no futuro de ajuda, embora agora ainda esteja autónomos. Mas também já encontrou casos de "pobreza envergonhada", pessoas que precisam de ajuda alimentar e para os quais pediu intervenção.

Casos difíceis mas para os quais tem sido possível encontrar soluções. O que, para André Viana, lhe permite chegar ao fim do dia com o sentimento de dever cumprido. "Nunca sabemos com quem falamos e às vezes há casos mais complicados, que nos sensibilizam, mesmo tendo mecanismos de defesa, acabamos por emergir na história da pessoa, deixamo-nos levar pela situação. Mas é muito gratificante chegar ao fim do dia e sentir que o nosso trabalho foi útil e o que fizemos marcou a diferença na vida de uma pessoa, porque, às vezes, basta um pequeno pormenor para desencadear várias mudanças. Há pessoas que não falam com ninguém há cinco, dez anos, pessoas que se encontram em solidão extrema e às vezes aquele momento em que estão ao pé de nós, em que partilham, e nós escutamos o que a pessoa diz, é o momento em que ela se sente de certa forma realizada."

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