Ortopedista luta para prolongar a qualidade de vida dos mais velhos

Carlos Evangelista fundou há dez anos a primeira unidade de ortopedia geriátrica do país no Hospital de Sant"Ana. Não tem medo de operar "pessoas de grande idade" e acredita que é possível dar qualidade vida aos maiores de 70

É uma visita de rotina, mas Carlos Evangelista percebe assim que entra no quarto que tem ali uma doente que não vê a hora de sair da cama, apesar dos 95 anos e de estar a recuperar de uma cirurgia à anca. À entrada do médico, diz que está deitada a ler mas a fazer os exercícios de fortalecimento da anca. Ele sorri e garante que foi a própria que lhe pediu para fazer a intervenção, porque não queria perder a sua independência. Neste caso, aconteceu aquilo que Carlos Evangelista descreve como "o privilégio de um doente que se parte e nós pomo-lo bem". O cirurgião está no serviço de ortopedia do Hospital de Sant"Ana da Santa Casa da Misericórdia há 34 anos. Há dez, fundou a primeira unidade de ortopedia geriátrica do país.

Esta é uma especialidade em que foi pioneiro - organizando mesmo o único congresso a nível mundial de ortopedia geriátrica, cuja sexta edição vai decorrer de 20 a 22 de setembro - e a que chegou por acaso, mas que depressa quis revolucionar. "Na verdade, isto começa por causa dos tiros aos pratos", conta. Tinha acabado o internato e para se inscrever no torneio dos Jogos Médicos teve de ir ao Centro de Medicina Desportiva. Aí, confessou que achava piada a essa área e foi convidado a ajudar, percorrendo diversas áreas até chegar à ortopedia. "No momento em que entrei nas consultas de traumatologia desportiva disse: "É isto que quero."

E só havia um caminho a seguir: o Hospital de Sant"Ana, a referência na área, onde agora dirige uma unidade recente e que o fascina. A ortopedia geriátrica é para Carlos Evangelista uma forma de dar qualidade de vida a pessoas a quem muitos médicos recusam tratamento por considerarem que já passaram a idade em que vale a pena fazer alguma coisa. E tem o exemplo perfeito: uma senhora de 103 anos caiu e fraturou o colo do fémur, foi operada no dia em que deu esta entrevista. O seu lema é não desistir de ninguém.

Viver até mais tarde e com qualidade

"Independentemente da idade, qualquer pessoa tem direito a ter qualidade de vida. Aquele conceito que existia de que a pessoa tem 80 anos e já não vale a pena é errado. Nós vamos durar até aos 90 ou aos 100. Nenhum de nós sabe qual é o nosso prazo de validade. E a grande diferença de tratarmos bem um sénior é poder reintegrá-lo na sociedade com qualidade de vida", defende o médico. Isto porque uma doente com 80 anos que fratura o colo do fémur, se não for rapidamente operada, vai ficar acamada para o resto da vida. Para o especialista, dar dois, três ou dez anos de qualidade de vida a esta população mais idosa é poupar dinheiro à sociedade, "porque é a diferença entre ter uma pessoa na sua casa, junto da família, e mais ou menos autónoma, ou depositada num lar, sentada a ver televisão o dia todo".

Para Carlos Evangelista, "os seniores vão ter uma palavra muito importante na sociedade", até porque vão ser cada vez mais. Quando fala em tratar esta faixa tão relevante da sociedade, não se trata apenas de os operar, colocar próteses, mas também garantir que têm a fisioterapia de recuperação e até a alimentação adequada.

E quanto às dúvidas que muitas vezes lhe levantam, e que têm dificultado o próprio alargamento da especialidade a outros hospitais, sobre se esta população tem ou não mais complicações? Carlos Evangelista trata de as dissipar rapidamente: operar pessoas "de grande idade, por incrível que pareça, não traz mais complicações", garante. "Muitas vezes os resultados são até surpreendentes, porque são pessoas que chegam a uma determinada altura da vida e já sofreram tanto, com tanta dor, que quando lhes proporcionamos a capacidade de andar a entrega é fundamental. Por isso digo muitas vezes: "Temos de acreditar que vamos ficar bem." Porque a energia positiva é fundamental", diz o médico.

Daí que para Carlos Evangelista a solução nunca é não operar, embora os seus doentes possam ter varizes, diabetes ou outras doenças, pois considera que fugir dessa intervenção só vai piorar as condições desse idoso. Embora não possa prometer o sucesso - nenhum médico o pode fazer, sublinha -, garante que hoje vale a pena a cirurgia, pois "o grau de sucesso é grande".

"Este doutor é que me vai pôr bom"

Por ser uma das poucas unidades no país que opera doentes mais velhos, o cirurgião ortopédico coleciona histórias de doentes especiais. Entre eles está Clotilde Ferreira, que aos 90 anos ainda dava aulas de ioga no Ginásio Clube Português. E foi precisamente com essa idade que subiu ao consultório de Carlos Evangelista, num segundo andar, com a ajuda de duas canadianas: "Disse-me: "Doutor, ninguém me opera porque sou velha"." Carlos Evangelista fez algo raro e prometeu que ia pô-la boa. "Foi operada, tem duas próteses da anca e está a andar", refere orgulhoso do resultado da sua intervenção, dois anos depois.

Outro caso é o de um doente de 94 anos, acamado há dois, que viu o médico na televisão e pediu ao filho para o levar a uma consulta, confiante de que ia ficar bom. E depois da operação voltou a andar. "São estas histórias que são muito gratificantes."

Cultivar uma velhice ativa

O médico recorda também a história de três senhores que ficaram maltratados depois de uma aula de hidroginástica em que desataram a pular a pedido de uma professora nova. "E vieram de lá com lesões nas ancas, nos joelhos", conta, alertando que fazer exercício é importante em todas as idades, mas que cada vez mais é preciso que quem está nos ginásios tenha conhecimentos para lidar com pessoas mais velhas. Esta vai ser aliás uma das áreas abordadas no congresso que se avizinha.

O que o médico tem a certeza que não quer é olhar para os seus doentes como pessoas que já não vão fazer muita coisa. E acha que muitos perdem o gosto de viver porque "ficam sós e chegam um bocadinho àquela conclusão de que já não vale a pena e que já viveram muito". Perante esta atitude, o ortopedista considera que é também uma obrigação sua "fazer que as pessoas sejam felizes com o pouco que têm" e com a vida. "Temos de tentar implementar nas pessoas esta vontade de serem felizes."

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