O maestro que anda há 30 anos a mostrar que a música clássica pode ser fresca

Desde 1988 que Filipe Carvalheiro é o diretor artístico da Temporada de Música em São Roque, da Santa Casa da Misericórdia, que arranca a 12 de outubro.

Reza a história familiar que Filipe Carvalheiro recebeu um instrumento musical aos 4 anos e nunca mais se separou da música. "Não me lembro", começa por reconhecer o próprio, o que mostra que o gosto chegou cedo, antes das memórias. "Aos 4 anos no Dia de Natal recebi um instrumento musical e comecei a tocar músicas e as pessoas acharam engraçado e que tinha jeito", conta, recordando a história que lhe é passada pelos pais. Foi esse episódio que levou o maestro para o estudo das pautas. Hoje, vive e trabalha em Copenhaga, na Dinamarca, mas volta todos os anos, já que há três décadas é o diretor artístico da Temporada de Música em São Roque, organizada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Começou a estudar na Academia dos Amadores de Música e daí seguiu para o Conservatório Nacional. Os estudos superiores foram na Escola Superior de Música de Lisboa, onde fez o curso de composição, porque era o que se aproximava mais das partituras, uma vertente que o ajudaria na direção de orquestra, o seu grande objetivo. "Queria estudar direção de orquestra e de coro e não havia grandes hipóteses em Portugal", relembra.

Foi essa falta de opções por cá que o levou aos Estados Unidos, mais concretamente à Universidade de Cincinnati, para "um mestrado em direção". No regresso a Portugal, trabalhou com um maestro italiano, Donato Renzetti, e depois mudou-se para a Holanda para estudar com um maestro finlandês, Jorma Panula.

Ia fazer um evento e ficou 30 anos

Em 1988, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) lançou um livro no Museu de São Roque e o provedor, na altura o padre Vítor Melícias, lembrou-se de marcar a ocasião com um apontamento musical. A mãe de Filipe Carvalheiro trabalhava na instituição e o secretário-geral conhecia o então estudante de Música do Conservatório e pediu-lhe para organizar esse momento musical.

"A coisa correu bem. E pouco tempo depois ele veio ter comigo e perguntou-me se eu me interessava por organizar uma série de concertos no Museu de São Roque. Uma vez que o museu não era muito conhecido, sugeri-lhe que intercalássemos os concertos no museu com outros aqui na Igreja de São Roque, onde já havia alguma tradição de concertos."

Foi assim que nasceu a Temporada Música em São Roque - o que ninguém esperava é que se estendesse por 30 anos. Até porque quando começou "nem sequer foi pensado como uma temporada de música para durar 30 anos, certamente. Foi pensado como acontecimento para fazer naquele outono de 1988". Mas a iniciativa "correu bem" e no ano seguinte lá estava Filipe Carvalheiro a repetir.

Neste ano, os concertos começam a 12 de outubro e estendem-se até 11 de novembro. No programa está a reposição de uma obra escrita pelo compositor Eurico Carrapatoso há 20 anos para a Temporada de Música da Igreja de São Roque, que será interpretada pelo mesmo grupo - a obra tinha sido escrita a propósito dos 500 anos da Santa Casa, que neste ano chegou aos 520. Há também música erudita que resulta das viagens dos Descobrimentos e dos vestígios da cultura portuguesa deixados no Extremo Oriente.

O desafio da música religiosa

A integração da Igreja de São Roque como palco deste ciclo trouxe também um outro desafio, que se mantém há três décadas. Aqui só podem ser apresentadas músicas de cariz religioso, já que o templo continua aberto ao culto. "O que acontece é que, ao longo destes 30 anos, estas condicionantes passaram a ser características da temporada, que é essencialmente de música vocal, com uma componente forte de música religiosa, complementada por outras obras apresentadas noutros locais sem estes constrangimentos."

Para a 30.ª Temporada Música em São Roque estão previstos 11 concertos e ainda cinco sessões de apreciação musical

Ao fim de três décadas, o maestro admite que não é muito fácil encontrar coisas novas, embora seja isso que procure e privilegie. "Aquilo que os grupos se propõem fazer muitas vezes não é tão inovador como eu gostaria", aponta.

Para Filipe Carvalheiro, os grupos "apostam relativamente pouco em formas inovadoras de apresentar a música", algo que ele procura sistematicamente. Isto porque tem consciência de que a "música dita clássica ou erudita tem sempre um peso agregado de antigo, velho ou ultrapassado" e não é assim. "Eu gostava de passar ao público sistematicamente esta ideia de que a música clássica pode ser ouvida sempre de uma forma fresca e nova." E descreve que essa forma inovadora pode passar por apresentar música que nunca foi ouvida antes, ou que está esquecida há séculos nas bibliotecas, ou ainda que pode ser tocada em vários cenários em simultâneo, permitindo ao público ir conhecendo o espaço à medida que assiste ao concerto.

Escolher a Dinamarca pela família

Ligado a Lisboa e à Santa Casa há três décadas, Filipe Carvalheiro escolheu, no entanto, outro país para viver com a família. A Dinamarca, garante, dá-lhe o que procurava em termos familiares, mas Portugal é um ponto fulcral - quer por ter cá a família mais alargada, mas também por causa dos projetos profissionais. "Aproveito as cinco ou seis vezes por ano que venho a Portugal para visitar a família e os amigos", refere.

"A minha mulher e eu preferíamos que as nossas filhas crescessem na Escandinávia e optámos pela Dinamarca." Esta foi a primeira prioridade e depois surgiram as oportunidades de trabalho, tendo já conseguido, por exemplo, ser convidado pela rainha Margarida para dirigir o concerto comemorativo dos cem anos de direito de voto das mulheres naquele país.

Atualmente, é maestro na Nordsjællands Symfoniorkester e na Kammerkoret Musica, onde trabalha com músicos escandinavos, mas também polacos, alemães, estónios, etc. "As orquestras e os coros têm talvez apenas um terço de elementos dinamarqueses", explica.

Satisfeito com a escolha, Filipe garante que não tem planos para regressar a Portugal tão cedo. Em Copenhaga encontrou o estilo de vida que pretendia, nomeadamente o equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal, e a segurança para educar as filhas. Em termos profissionais, Filipe Carvalheiro diz ter também um "público mais aberto" à música clássica, embora reconheça que em todo o lado há barreiras a quebrar nesta área. Um desafio que por cá procura combater com a Temporada Música em São Roque.

Temporada abre a 12 de outubro

É o Coro Gulbenkian que abre o programa deste ano da Temporada da Música, a 12 de outubro, na Igreja de São Roque, em Lisboa. Mas a música estende-se a outros palcos, até 11 de novembro, como o Convento de São Pedro de Alcântara, o Mosteiro de Santos-o-Novo ou a Igreja de Nossa Senhora do Loreto. Os bilhetes custam três euros. Para além dos concertos, neste ano há também um ciclo de cinco encontros de apreciação musical conduzidos pelo maestro Martim Sousa Tavares e com a presença do Ensemble MPMP, pensados para guiar o público à descoberta da música clássica e erudita, "explicando os seus significados e segredos e quebrando barreiras entre a música, a arte e a vida quotidiana", explica o programa. Estes encontros são gratuitos, embora com entrada limitada à lotação dos espaços.

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