Erguer a terra das cinzas. A urgência que mobilizou Valado

Albino Gomes é um dos rostos da reconstrução depois dos incêndios de outubro de 2017. Defendeu os projetos para a sua aldeia - Valado - e contou com o apoio da junta de freguesia local, da Câmara de Arganil e do Fundo Recomeçar da Santa Casa.
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Com o coração na terra que o viu nascer, Albino Gomes não ficou descansado em Lisboa quando a 15 de outubro soube que o seu Valado natal estava ameaçado pelas chamas. Saiu noite dentro e contornou os obstáculos - as estradas estavam cortadas e as autoridades não permitiam o acesso - e só descansou quando chegou a casa. "Mesmo assim, às quatro da manhã meti-me no carro mais a minha filha e a minha mulher e viemos. Encontrámos estradas cortadas, mas como conheço a minha zona muito bem, viemos aos ziguezagues, às voltinhas, e consegui cá chegar", explica, falando num miradouro onde já se vê Valado a renascer. Hoje, já são mais os pontos verdes no horizonte do que os pretos (embora esses ainda existam, não deixando esquecer o que aconteceu).

Na devastação do incêndio - no concelho de Arganil, a que Valado pertence - perderam-se quatro vidas, ficaram destruídas 70 casas e e grande parte da floresta do concelho. À dificuldade e ao sofrimento inicial depressa se juntou a vontade coletiva de dar a volta por cima. "Somos serranos e estamos habituados a olhar para as adversidades e tentar ultrapassá-las", sublinha o autarca de Arganil, Luís Paulo Costa. Uma dessas ajudas chegou do Fundo Recomeçar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que apoiou 12 projetos no concelho.

Depois do rescaldo

"O impacto dos incêndios, infelizmente, não terminou naqueles dois ou três dias. E o que existiu no território pós-incêndio em termos de dificuldades logísticas, obrigou-nos a um trabalho muito intenso, principalmente no ano subsequente. Foi necessário dar prioridade àquilo que era o imediato", aponta o presidente do município de Arganil.

Para as gentes de Valado, e em especial para Albino Gomes, a prioridade era a de reerguer a pequena aldeia. Logo na manhã seguinte ao incêndio, começaram "a magicar ideias, como é que se podia dar vida à aldeia outra vez, porque isto era uma escuridão", recorda o vice-presidente da Comissão de Melhoramentos de Valado.

As ideias vieram: comprar uma máquina e reflorestar as áreas envolventes da aldeia com árvores autóctones, de forma a dificultar a progressão de futuros incêndios. E aí entrou a colaboração da câmara municipal e o financiamento da Santa Casa, como explica Luís Paulo Costa. "No projeto do Fundo Recomeçar houve um grande interesse manifestado pelos responsáveis das comissões de melhoramentos e juntas de freguesia e nós próprios vimos também que era uma oportunidade. Portanto, temos projetos não só em número, mas também em qualidade em que acreditamos muito."

No Valado, os fundos permitiram a compra de uma máquina para trabalhos florestais. "A nossa aldeia fica num vale e todas as terras do cume da serra foram lá parar umas duas ou três vezes e ficámos atascados", justifica Albino Gomes, que agradece também o apoio da Junta de Freguesia de Coja-Barril de Alva.

A máquina vai ser útil também, sublinha o responsável, para ajudar a limpar estradas e valetas e a manter a salvo as árvores que foram plantadas com o intuito de reflorestar as encostas que envolvem Valado. Estão a brotar da terra "carvalhos, sobreiros, pinheiros-mansos, medronheiros e pinheiros-bravos". Árvores que, Albino Gomes não tem dúvidas, ajudarão à recuperação da aldeia. Se não para ele, "para a minha filha e para os vindouros".

Uma ação que o próprio autarca acredita vir da consciência de que "nada podia ficar igual", sob pena de estas localidades virem a sofrer ainda mais os efeitos das alterações climáticas.

Uma terra de partida e de futuro

Albino Gomes, 74 anos, nunca desistiu da sua terra natal e acredita que apesar de ter perdido grande parte dos seus habitantes, ela terá futuro. Para isso, tem trabalhado nos últimos 51 anos - o que até leva a filha a brincar que "É Deus no céu e Albino no Valado". "Com 23 anos, vim aqui à aldeia e necessitávamos da comissão de melhoramentos, que estava inativa. Reativámos a comissão, eu fiquei como vice-presidente e já lá vão 51 anos." Uma dedicação que Albino desvaloriza: "A gente dificilmente se desliga, é o meu caso e o de muitos outros. Não sou o único, uma andorinha não faz a primavera."

Albino até pode não ser o único, mas já poucos têm presente dificuldades como a que ele teve de superar. Aos 13 anos, saiu de Valado e rumou primeiro à Sertã para ser padeiro, e depois acabou por seguir para Lisboa, sem saber sequer como era a capital. Lá estava também o seu irmão, então com 14 anos e acabou a dividir o quarto com ele, nos primeiros tempos. Esteve três anos e meio sem voltar a casa, "com as saudades todas da família, mas a vida era muito difícil e tinha de ser assim", recorda, resignado. Hoje, já consegue dividir o seu tempo entre Lisboa e o Valado. E se é verdade que o seu coração está no meio das serras de Arganil, Albino não esquece que foi a capital que lhe deu a vida melhor que procurava.

Foi também a pensar numa vida melhor para a sua terra que se empenhou na comissão de melhoramentos. Hoje, constata com alguma tristeza que "antigamente a aldeia não tinha telefone, água, luz, as ruas arranjadas, não tinha nada. Hoje, que tem todas as condições para ser habitada, não tem gente".

Pelo menos não a tempo inteiro. Mas Albino Gomes não atira a toalha ao chão. E quando questionado se Valado tem futuro, a resposta é inequívoca: "Tem." "Isto não está explorado a nível turístico e as pessoas estão a fugir dos grandes aglomerados e a procurar refúgio nestas terras, principalmente para segundas casas. E tendo cá uma segunda casa, as pessoas já vêm passar as suas férias, um fim de semana alargado. E eu estou a ver o futuro destas aldeias precisamente aí."

Para atrair esses novos habitantes para as aldeias, o homem de Valado conta com o entusiasmo de organizações como a comissão de melhoramentos que representa. "Quando não deixamos cair as aldeias no marasmo e lhes damos alguma vida, eu acho que elas têm futuro."

E a perspetiva é de que os dias que virão sejam mais verdes, pelo menos assim o espera Albino Gomes, que todavia não esquece a tristeza e a escuridão do dia 15 de outubro de 2017 e dos seguintes, mas hoje prefere falar da "felicidade" que os valadenses sentem ao ver a sua paisagem "a tomar caminho e a voltar ao que era antigamente".

"Temos gosto naquilo que é nosso. E este é o nosso torrão, é disto que a gente gosta", diz Albino Gomes sobre Valado, o sítio onde sempre teve o coração e onde espera que mais pessoas o venham a ter no futuro.

Jogos sociais para a reconstrução

O Fundo Recomeçar é constituído pelas receitas dos resultados líquidos da exploração dos jogos sociais do Estado, atribuídos à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, vendidos na semana de 16 a 24 de dezembro de 2017. Apoia financeiramente, de forma direta ou indireta, as crianças e os jovens dos concelhos afetados pelos incêndios, beneficiárias de abono de família pelo 1.º escalão de rendimentos. Também podem ser apoiadas entidades de associativismo jovem e outras entidades públicas que visem a recuperação do ambiente, nas zonas afetadas pelos incêndios de outubro 2017.

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