Empurrado para a natação, David acabou a cumprir o sonho paralímpico

David Grachat tem 31 anos e sonha com uma despedida dos Jogos Paralímpicos, em Tóquio, que fique na história. Durante três anos recebeu uma bolsa da Santa Casa de apoio a atletas
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O ponto de encontro não podia ser outro: as piscinas da GesLoures, em Santo António dos Cavaleiros, um espaço que conhece desde a inauguração, em 1992. David Grachat trata a piscina por tu, ou não passasse aqui grande parte do seu dia: "Acordo às 06.00 para vir treinar, saio para ir trabalhar e depois volto para a piscina à uma da tarde. Faço ainda treino de preparação física e volto para a piscina outra vez. A seguir vou dar treino também. É cansativo, chego a casa muito tarde e no dia a seguir tenho de acordar cedo para voltar a estar aqui."

O nadador português de 31 anos está, neste ano, a testar uma nova rotina. Acabou o curso superior de Educação Física - durante o qual beneficiou de uma bolsa de estudo dos Jogos Santa Casa para atletas paralímpicos - e está a treinar alunos do Colégio Vasco da Gama, em Lisboa. Ao mesmo tempo, continua focado no objetivo de estar em Tóquio, nos Paralímpicos de 2020. Se marcar presença serão os seus quartos Jogos. Uma marca importante para alguém que no início nem gostava muito de natação.

"Sou nadador há 17 ou 18 anos." Antes, "andava a aprender a ser nadador", mas já estava ligado à água. Começou a olhar de forma mais séria para as pistas aos 14 anos. "Comecei a vir para a natação pelo colégio "Os Águias", da extinta Covina, onde o meu pai trabalhava. Entretanto, o médico também aconselhou a natação porque, além de uma malformação congénita da mão esquerda, também tenho umas atrofias no tronco do lado esquerdo e no braço e ele disse que era bom para o desenvolvimento muscular. Foi mais ou menos assim, fomos empurrados e estou até hoje", recorda.

David era já um atleta de competição, embora sem grande entusiasmo, quando percebeu que podia ser mais. A vocação, descobriu-a aos 17 anos quando ficou à porta dos Paralímpicos de Atenas, em 2004. "Foi o clique. Pensei: "Bem, eu realmente tenho algum jeito para isto e estou a desperdiçá-lo." Gostava de vir à natação, sempre adorei a água, mas não gostava de treinar. A partir daquele momento em que fiz os mínimos duas semanas depois do prazo, fiquei tão abalado que pensei "nunca mais vai acontecer isto"."

Paralímpicos: um momento único

Atenas 2004 foi um momento de viragem que o treinador Carlos Mota também não esqueceu. "Já tinha quatro nadadores qualificados e o David obtém mínimos 15 dias depois do prazo. Ele foi despedir-se ao aeroporto e chorou imenso. Ficou muito triste e prometeu a ele próprio que nunca mais ia ficar de fora, e o facto é que nunca mais ficou."

Estreou-se então em 2008, em Pequim, seguiu-se Londres 2012 e depois o Rio de Janeiro, em 2016. O que parece já uma rotina é visto sempre como um momento especial para o nadador dos 400 metros livres. "Assim que entrei no Estádio Nacional de Pequim foi um mar de lágrimas de felicidade", recorda, sublinhando que estavam "80 mil pessoas ali à volta a gritar". Um ambiente "mágico" que lhe provocou "arrepios".

A emoção é tal que David vê-se a continuar a ir aos Paralímpicos. Depois de deixar as braçadas, como treinador ou até "como espectador". "Se não for como treinador, hei de ir como espectador porque quero viver aquele momento de quatro em quatro anos. É único e especial, não há volta a dar."

Neste momento, David ainda não sabe como vai viver esse momento em Tóquio, daqui a dois anos. A preparação e a ambição contam para que seja como atleta. Seriam as suas últimas paraolimpíadas nessa condição. Porém, tanto o atleta como o treinador de há quase 20 anos são cautelosos. Os Jogos do Rio de Janeiro estavam para ser os últimos, só que não correu como David queria: "Não fechei com chave de ouro." O nadador ficou em oitavo lugar na final. Em Londres, tinha conseguido o sexto lugar e um recorde para Portugal com 4m21,94s.

David quer assim apagar uma participação menos conseguida para terminar a carreira paralímpica em alta. E se tivermos em conta que a sua última promessa era de que não ficaria fora de mais nenhuns Jogos, estão reunidas as condições para que Tóquio acabe por ficar para a história.

"A seguir aos Jogos do Rio combinámos que ia ser um ano de cada vez, precisamente para tentar chegar a Tóquio. Os dois primeiros anos são os mais difíceis e estão quase passados. Acredito que se não houver nenhum imponderável, nenhuma lesão grave, nada de traumático na vida dele, o David estará presente em Tóquio", defende Carlos Mota, também coordenador da natação adaptada da GesLoures.

Relevante é também o facto de David ser "muito bom a treinar", mas ser "melhor ainda a competir". "Independentemente do estado de forma em que esteja, do momento da época em que estiver, quando sobe a um bloco de partida para competir, ele só pensa em ganhar. E é excelente cada vez que entra em competição", elogia o treinador.

Bolsa ajudou a conciliar preparação

Entre 2015 e 2017, David contou com o apoio das bolsas dos Jogos Santa Casa para atletas olímpicos e paralímpicos. O apoio no valor de 3000 euros por ano foi "fundamental" para que o agora treinador e professor esteja já a exercer. A ajuda que classifica de "divina" permitiu-lhe mudar de faculdade e frequentar sem falhas os três anos da licenciatura em Educação Física, que terminou no ano passado. "Isso veio dar uma ajuda enorme e aí começou a definir-se na minha cabeça aquilo que gostaria de fazer a seguir", reconhece. E já fala na oportunidade que tem agora de poder partilhar os seus conhecimentos e "quiçá levar atletas aos Olímpicos ou aos Paralímpicos".

David lamenta que a bolsa do Estado para o programa paralímpico não seja suficiente para permitir aos atletas conciliar os estudos com a preparação física, considerando mesmo que a bolsa da Santa Casa acabou por ser preponderante no seu sucesso académico. "A bolsa do Estado não chega para pagar a faculdade. Tenho outros encargos como fatos de banho, toucas, óculos, barbatanas, deslocações. Isso faz parte da bolsa do Estado. A dos Jogos Santa Casa veio dar aquele ânimo extra para terminar os estudos concentrado e o mais rapidamente possível, porque não temos de pensar como é que vamos utilizar o dinheiro da preparação para pagar os estudos."

O último ano foi cheio de mudanças felizes para David: terminou o curso, começou a trabalhar e casou-se. Mas foi com o trabalho que viu a sua personalidade mudar: "Deixei de ser resmungão. A partir do momento em que comecei a dar treino, eles estavam sempre a resmungar comigo, então chego aqui ao meu treino e penso que não posso fazer isso ao meu treinador."

Uma mudança que Carlos Mota aprecia, já que treina David entre cinco e oito horas todos os dias, há 18 anos. "Ele percebe um bocadinho melhor o lado de cá. Enquanto ex-desportista entendo o que eles passam dentro de água e ele agora também entende a ansiedade e a angústia do treinador que está cá fora e que só consegue ir até onde o atleta deixa." Um novo entendimento que pode dar frutos em Tóquio 2020.

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