Viagens na minha terra

Histórias de uma viagem de carro que demorou mais dois dias do que era esperado, mas que se tornou numa aventura. Lembranças de uma terra onde a fruta está literalmente à mão de semear e os animais selvagens correm soltos à beira da estrada. Ali tudo era possível, mas o tempo é soberano e não permite voltar atrás.
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Maria Emília Gonçalves

Nova Lisboa (Huambo), Angola

1955-1975

«De uma das vezes que fomos passear ao Lobito, um amigo do meu pai pediu-lhe que trouxesse um carro Dodger, que tinha lá para arranjar.» Começa assim uma das muitas aventuras vividas em terras africanas por Maria Emília Gonçalves. Um percurso que deveria demorar poucas horas deu origem a um fim-de-semana diferente: «Tinha 8 anos e lembro-me de que foram dois dias de viagem e inúmeras paragens para reparar trinta furos nos pneus. Era o tempo das câmaras de ar e dos remendos.» Os passeios em família e em viagem eram frequentes: «Gostávamos de partir de madrugada, para assistirmos ao nascer do dia, ou ao fim da tarde, para apanharmos o pôr do Sol.» Levava-se a merenda e o repasto era feito no caminho: «Mas daquela vez demorámos tanto tempo que o meu irmão chegou a comer os ossos do frango que se levara para o piquenique. Ainda para mais, ia connosco uma moça a quem tínhamos dado boleia, que enjoou o caminho inteiro.» Percalços como estes não impediram que se continuassem as aventuras em família: «Íamos até Sá da Bandeira, Luanda, Moçâmedes ou Novo Redondo, por exemplo. Gostávamos muito desta última estrada porque era ladeada de mamoeiros. Era só apanhar e comer.» Nestas paragens tinham, normalmente, a companhia dos macacos, que saltavam de árvore em árvore, de um lado para o outro do caminho.

Maria Emília nasceu em Nova Lisboa, hoje Huambo: «Fica no planalto central, onde o clima é mais seco e ameno do que o da zona litoral. Passamos o Inverno com uma camisa e um casaco de lã.» Os seus pais foram para lá com a intenção de irem trabalhar e depois regressarem, «mas só voltaram muito mais tarde e por necessidade. Teriam lá ficado o resto da vida».

Os seus estudos iniciaram-se num colégio de freiras, mas não terminou ali a quarta classe: «Todos os dias tínhamos de ir em fila rezar, antes de podermos lanchar. Às vezes, não me apetecia. Sou católica e não tinha nada contra a Igreja ou contra Deus, mas por vezes apetecia-me ficar sossegada num cantinho entre dois pilares. Um dia apanharam-me e entrei em conflito com uma das madres. Decidiram chamar os meus pais e dizer-lhes que estava com mau aproveitamento e que deveria sair e ir concentrar-me nos estudos». Ficou então a cargo de uma professora particular que a preparou para os exames da quarta classe e de admissão ao Liceu: «Tive melhor classificação do que as minhas colegas, o que foi uma grande vitória.» Escolheu depois o curso comercial, e quando saiu o pai já tinha um lugar para si nos Correios. Maria Emília recusou. Queria conseguir um emprego sozinha. Foi trabalhar para os Transportes de Viação de Angola, primeiro como dactilógrafa, depois como escriturária, mais tarde, ajudante de caixa e mecanização.

Nunca fez parte dos seus planos viver em Lisboa. Se dúvidas houvesse, terminariam em 1968, quando vieram visitar a família: «Ainda mal tinha chegado e já queria ir-me embora. Ficámos quase seis meses.» As diferenças entre Lisboa e a sua terra natal eram abissais. São memórias que guarda com muita saudade, talvez só semelhantes a quem viveu numa aldeia. Mas no caso de Maria Emília, esta era uma aldeia enorme e com os confortos da cidade: «Brincávamos na rua e íamos sozinhos para a escola. Mesmo quando já trabalhava, ainda havia tempo para me encontrar com os amigos, ir para a piscina, e depois do jantar ainda dar uma voltinha.» Os jogos de basquetebol e futebol, os bailes, as festas de Carnaval e até passagens de modelos eram uma constante: «Uma amiga fez uma minissaia, que estava na berra na altura, com recortes de jornais.» Hoje, os dias são diferentes: «Perdemos metade do tempo em transportes e andamos sempre cansados.» Garante que não é apenas uma questão de idade: «Lá, trabalhávamos, passeávamos e convivíamos. Os meus pais tinham a mesma idade que tenho agora e não os via cansados, mas felizes e libertos.»

Em Agosto de 1975 a sua vida mudou: «Quando cheguei a casa numa sexta-feira do mês de Agosto desse ano, o meu pai chamou-me e disse-me que tinha de acompanhar a minha mãe a Lisboa.» Rebentara uma granada no telhado da casa, que fizera cair parte do tecto da cozinha quase em cima da sua mãe, que ficou em choque. O médico aconselhou-a a viajar, mas alguém teria de acompanhá-la. Maria Emília fez as malas para uma estada de 15 dias e nunca mais voltou: «Não sou infeliz, mas a parte mais feliz dos meus 55 anos foram passados lá. Tenho muita saudade daquela vivência, da sinceridade das pessoas. Havia o hábito da convivência, a disponibilidade e o tempo. Tempo para tudo.»

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