ESTRANHA FORMA DE VIDA
É muito clara a resposta que Vital Moreira deu ao meu último artigo, no seu blogue Causa Nossa, em 8.11.07. As questões que levanta são efectivamente de ponderar. Mas estou em crer que algumas respostas podem e devem ser diferentes das que ele avança.
É verdade que, numa democracia representativa, "as decisões devem ser tomadas pelo Parlamento, sendo o referendo um processo excepcional de decisão que carece de forte justificação". A Constituição aponta, nesse sentido, o relevante interesse nacional. O juízo a tal respeito implica uma leitura política que não pode também deixar de estar presente na decisão final do Presidente da República. Uma justificação para o referendo só pode ser alicerçada e configurada nesses termos.
Também é verdade que o referendo não pode ser exigido apenas "porque se discorda de alguma coisa". Mas quem entender que o Tratado de Lisboa é essencial para a Europa e para os Estados membros dificilmente poderá, ipso facto, arredar a dita relevância.
Já não me parece que colha a distinção de natureza entre o Tratado Constitucional e o Tratado de Lisboa.
É communis opinio a de que este leva à recuperação de praticamente toda a substância daquele e não creio que valham neste ensejo os argumentos de natureza meramente formal, como a designação do tratado ou a supressão, nele, de referências aos símbolos identificadores da Europa.
Se, por hipótese, o Tratado Constitucional não tivesse tido esse nome, acaso deixaria de sê-lo? Ou, como a rosa de Shakespeare, teria sempre o mesmo perfume com outro nome, isto é, sempre o seria por estruturar politicamente a União e os seus órgãos e regular toda uma série de questões ligadas ao exercício (ou abdicação de exercício) da soberania dos Estados membros e à participação destes nas instâncias europeias, segundo regras, muitas delas inteiramente novas?
A Constituição adoptava alterações quanto aos tratados anteriores, incorporando tudo isso na sua redacção; o Tratado de Lisboa adopta-as "em cru", sem proceder logo materialmente a essa incorporação, mas não a dispensa: depois de 13 de Dezembro, haverá que preparar um texto consolidado oficial que incorpore as emendas. Até porque, se isso não for feito, ninguém conseguirá aplicar na prática os dispositivos adoptados.
Pretendendo-se obter o mesmo resultado, não pode ser diferente o alcance político do Tratado de Lisboa em relação ao anterior.
A atitude de alguns responsáveis europeus que, por um lado, garantem com euforia ser o Tratado de Lisboa idêntico ao anterior no essencial, mas, por outro, acabam de descobrir, com impagável gravidade, já não ser afinal precisa uma ratificação por referendo nos seus países, configura uma reserva mental que se aproxima perigosamente da fraude.
Ora, mesmo que se entenda ser diferente a natureza dos dois textos, o compromisso eleitoral do PSD e do PS não perdeu nenhum dos seus pressupostos, porque estes tinham necessariamente a ver com a substância e não com a forma. E cumpri-lo, note-se, não é "fazer o referendo", mas sim contribuir para justificar a sua necessidade junto do Presidente da República.
Não conheço em Portugal quem aplauda o tratado e tema o resultado da consulta popular. O "sim" ganharia sempre entre nós, mesmo dando de barato haver "soberanistas à direita e à esquerda que nunca se conformaram com a integração".
O PSD e o PS têm medo do referendo na medida em que temem afrontar um presidente da República que se julga não ser entusiasta dele. Mas seria preferível que o defendessem com franqueza e aguardassem as razões eventualmente contrárias, mas decerto muito ponderadas, de Cavaco Silva.
Por sua vez, o Governo e o PS têm medo dos outros Estados membros. A presidência portuguesa ou se comprometeu, no plano europeu, a não promover o referendo, por razões óbvias que interessam aos Estados mais poderosos, ou submeteu-se, sem mais, a essas razões.
Se se eximir ao que prometeu, o Governo terá de arcar com os custos de faltar a mais uma promessa eleitoral e de viver com a suspeita de ter pactuado com outros governos essa estranha e ambígua forma de vida para um tratado que transformará profundamente a União Europeia e as suas regras, sem que muitos dos seus cidadãos sejam ouvidos.|