Sartre

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"Quem é este novo Jean-Paul?" André Gide fez a pergunta em 1938, o ano em que o "tal" Jean-Paul publicou o romance A Náusea, e bem longe de suspeitar que esse "novo" autor haveria de o suceder na liderança das letras francesas.

A curiosidade de Gide era acerca de alguém que, quando pequeno, sonhava ser como Vítor Hugo, mas que "tornou-se Jean-Paul Sartre" - para usar as palavras de Michel Winock em O Século dos Intelectuais. Foi escritor, filósofo, dramaturgo, revolucionário, ensaísta, polemista? Um dos grandes "actores" e pensadores do século XX que marcou várias gerações com a sua "filosofia da liberdade" e conhecido pelo cliché redutor de "pai do existencialismo". Quando morreu, em Abril de 1980, o Libération, através de Serge July, chamou-lhe "o enorme Sartre". E vieram as comparações alguém "que preencheu o século, tal como Voltaire e Hugo preencheram o seu?" Nessa mesma altura, também nas páginas de um jornal, um leitor acusava: "O papel que desempenhou entre os homens foi satânico." E outro ainda: "Ele foi o papa do desespero." Estas duas cartas foram recentemente recuperadas pela revista francesa L'Histoire, numa edição dedicada ao autor de obras como O Muro, Palavras ou O Ser e o Nada. Falam de um homem polémico que nasceu faz hoje cem anos.

Arrogante, provocador, radical, arguto e "excepcionalmente dotado", Jean-Paul Charles Aymard Sartre veio ao mundo a 21 de Junho de 1905, em Paris. A sua vida terá sido marcada pela morte prematura do pai, um oficial da marinha que morreu em 1906 durante uma comissão na Cochinchina. A partir de então, Jean-Paul mudou-se com a mãe, Anne-Marie Schweitzer, para casa do avô materno, um protestante de origem alsaciana e professor de Alemão da Sorbonne que vivia próximo do Jardim de Luxemburgo. Foi aí que Sartre cresceu, isolado de outras crianças e entregue aos ensinamentos de professores particulares. Todos o tratavam como um prodígio e ele habitou-se a que mimassem essa sua condição de precoce. A falha que lhe apontavam era a feiúra que chegou mesmo a surpreender a mãe, após uma infecção no olho que provocou estrabismo e um corte de cabelo revelador da face.

o dom. Após os primeiros estudos em casa, o jovem Sartre foi para o Liceu Henrique IV, em Paris. Mais tarde, depois do segundo casamento da mãe, mudou-se para La Rochelle. Em 1924, vai estudar para a École Normale Supérieure. Por essa altura já é senhor de uma considerável produção literária. Leitor insaciável desde a infância, começou a sua actividade intelectual pela literatura. Nos tempos de liceu escrevia já textos de ficção, desenhando-se neles o conceito que haveria de estar no centro não apenas da sua actividade enquanto romancista, mas também do seu pensamento filosófico e que transformaria em norma de vida a liberdade, como poder de afirmação e motor da criatividade.

Numa entrevista ao número de Abril da L'Histoire, o catedrático da Universidade de Paris Jacques Colette fala desse primeiro talento de Sartre "Ao descrever as coisas em bruto, tal qual se oferecem ao olhar (...) dir-se-ia que é não apenas um escritor que vai além do naturalismo de Zola ou do realismo de Jules Renard, mas um filósofo que pressente aquilo que mais tarde se chamará 'consciência intencional'." A tradução é livre, mas a ideia está lá: "Sartre é já um escritor - e manter-se-á como tal."

Na École Normale foi contemporâneo de Raymond Aron, Maurice Merleau-Ponty, Paul Nizan, Claude Lévi-Strauss e Simone Weil. Foi lá que, em 1929, conheceu, também, a mulher com quem manteve um romance durante toda a vida Simone de Beauvoir (1908-1986), o seu "amor necessário".

A figura. Que terá visto Simone em Jean-Paul? Voltemos a Michel Winock e ao retrato que traça do homem Sartre. "? sofre de um estrabismo divergente que corrige com óculos de aros de tartaruga; o penteado é impecável, os cabelos muito junto ao crânio com uma risca do lado direito, vestido, na maior parte das vezes, com um fato de jaquetão então muito na moda, fumando cigarro através de cigarro, excepto quando usava o seu cachimbo de espuma-do-mar (...) Essa fealdade, que nos impressiona à primeira vista, é subitamente anulada logo que Sartre abre a boca. Quando fala, com uma voz um pouco nasalada mas bem colocada, é raramente para dizer banalidades." Foi este homem de pequena estatura física que seduziu Simone e a quem ela passou a tratar por "querido pequeno ser" na correspondência que mantiveram até ao fim dos seus dias. Um mimo que Sartre retribuía, chamando Simone com outro petit-nom Castor (um jogo de palavras com o termo inglês beaver - castor).

Sartre propõe-lhe uma relação na qual ambos seriam livres para outros amores. Contra os preceitos burgueses, não casariam, não teriam filhos, nem partilhariam o mesmo tecto. Tudo no pressuposto da liberdade. Simone aceitou e durante décadas formaram um casal--modelo aos olhos dos menos ortodoxos.

No ano em que conheceu Simone, Sartre terminou o curso de Filosofia. Cumpriu o serviço militar como meteorologista, em Tours, e deu aulas no Liceu do Havre em 1933-34. A conselho de Raymond Aron, leu, nesse ano, a tese de Emmanuel Levinas, Théorie de l'intention dans la Phenoménologie de Husserl (1930). Deu-se, então, o clique que o estimulou no estudo da Filosofia. Foi para Berlim aprofundar a fenomenologia de Husserl e descobriu Sein und Zeit, de Heidegger. Foram os dois autores alemães que inspiraram os primeiros ensaios filosóficos.

A partir de Heidegger explora a ideia de imaginação. Só através da imaginação - defende - é possível aceder ao real. Isso serve-lhe enquanto autor de ficção e filósofo. Passa a ter o epíteto de "filósofo do imaginário".

De homem só a homem social. Durante a década de trinta, estudou, viajou com Simone de Beauvoir e escreveu. Em 1975, há-de confessar numa entrevista "O único objectivo da minha vida era escrever." Não apenas ensaios filosóficos. Continuava a perseguir o seu ideal. Afirmar-se como um grande escritor era quase uma obsessão. Ainda em O Século dos Intelectuais, Michel Winock reproduz as palavras de Sartre sobre esse período da sua vida "Antes da guerra, considerava-me simplesmente como um indivíduo qualquer. (...) Ao acabar a escola primária, já tinha construído toda uma teoria sobre este assunto: eu seria um 'homem só', ou seja, um indivíduo que se opõe à sociedade pela independência do seu pensamento, mas que não deva nada à sociedade e sobre quem esta nada pode, porque ele é livre." Em 1938, publicou A Náusea, romance contra a burguesia, classe a que condena quase tudo, e um ano depois edita O Muro (1939), uma colectânea de contos com o mesmo alvo a burguesia.

Amigo de Paul Nizan e de Raymond Aron (com quem viria a incompatibilizar-se mais tarde), assiste às suas discussões políticas e intromete-se pouco. O que lhe interessa, para já, é a literatura.

Mas tudo muda quando é mobilizado para a II Guerra Mundial. "Foi isso que fez entrar o social na minha cabeça", dirá mais tarde. Nos Cadernos de Guerra retoma o formato de diário que já usara em A Náusea e relata e reflecte sobre essa vivência que o fez passar do individualismo ao socialismo.

Em 1940, após a invasão da França por Hitler, Jean-Paul Sartre é feito prisioneiro e encerrado no campo de concentração de Trier, na Alemanha ocidental. Continua o seu diário de guerra, mas, graças a um atestado médico falso, é libertado em Março de 1941. Sai com a noção de que lhe cabe uma responsabilidade política e organiza um grupo de resistência "Socialismo e Liberdade", que quer independente de comunistas e gaulistas. Com ele estão Jean-Toussaint Desanti e Maurice Merleau-Ponty. O grupo não passa a fase da clandestinidade. Sartre volta a investir na escrita. Em 1943, edita O Ser e o Nada, um "hino à consciência e à liberdade" que o coloca no topo da pirâmide existencialista. Conhece Albert Camus. Trocam elogios e iniciam uma amizade que não se revelará duradoura. Em causa estarão opções políticas distintas. Sartre aproxima-se do comunismo. Camus não suporta o discurso marxista.

O comprometimento. Entretanto, com Simone Beauvoir, funda a revista Temps Modernes. O primeiro número sai em Outubro de 1945. Além do casal Sartre-Beauvoir, fazem parte da direcção Michel Leiris, Maurice Merleau-Ponty, Albert Ollivier, Jean Paulhan e Raymond Aron. O grupo irá desmembrar-se em pouco tempo, com o afastamento dos três últimos nomes. No texto de apresentação, Sartre faz a apologia do comprometimento do escritor com a épca em que vive. O engajamento é um imperativo e a ficção tem um carácter "utilitário".

Por esta altura, o seu prestígio está no auge. Distingue-se enquanto pensador, mas continua non grato nos meios académicos, apesar de voltar a leccionar. Publica o extenso Les Chemins de la Liberté, L'Age de Raison e Le Sursis. Afirma-se como dramaturgo e é solicitado para escrever para cinema. Divulga nomes à literatura e assina ensaios políticos. Alguns estão na origem do desentendimento, em 1955, com Merleau-Ponty. De esquerdista, confesso e manifesto, passa a defensor da URSS de Estaline e do comunismo.

Não se filia, mas assume-se progressivamente marxista. Viaja pela Rússia, Escandinávia, África, Estados Unidos, e Cuba. Vai-se desencantando. Ainda assim, edita em 1960 Crítica da Razão Dialética, onde tenta encontrar afinidades entre o existencialismo e o marxismo. Em 1964, escreve As Palavras, uma análise à sua própria infância. Nesse ano, ganha o Nobel da Literatura. Recusa o prémio.

O fim. Dedica os seus últimos anos ao estudo da vida e obra de Gustave Flaubert. Apoia o movimento estudantil de 1968. Também por isso Raymond Aron há-de acusá-lo de cortejar "todas as juventudes do século." Continua a viajar. Em 1975, visita Portugal. Num texto publicado recentemente no DN, Diogo Pires Aurélio escreveu a propósito "de tudo aquilo que então aqui se passava, as únicas coisas que parecem tê-lo realmente tocado (...) foram o Ralis, um quartel de duvidosa disciplina militar, e uma empresa de tecelagem, no Norte do País, com duas dezenas de operárias em autogestão."

O seu prestígio está em queda e a sua saúde débil, após anos de excessos de álcool e tabaco. Quase cego, vive os derradeiros anos incapaz de escrever. Morreu a 14 de Abril de 1980, vítima de um edema pulmonar. Simone de Beauvoir escreveu um livro sobre os dias que antecederam o fim do seu companheiro de sempre. Chamou-lhe A Cerimónia do Adeus, e dedicou-o "àqueles que amaram Sartre, o amam, o amarão".

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