A feminista que nos anos 70 falava na TV sobre planeamento familiar e defendeu as quotas é agora a única mulher no Conselho de Estado, em substituição da sua amiga Manuela Ferreira Leite. A ministra da Saúde que os médicos odiavam e que foi acusada de dolo na infecção de hemofílicos com HIV está à frente de uma fundação milionária criada para combater doenças. Entrevista rara de uma mulher invulgar
Não tem saudades da vida política?
Não tenho saudades porque estou a fazer uma coisa mais interessante. No Ministério da Saúde houve muitas coisas interessantes que gostei de fazer. E como deputada também houve. Agora, tendo nas mãos um projecto do tipo deste, que acho uma coisa tão fantástica, não me passa pela cabeça, seria uma ingrata do pior, se desatasse a ter saudade de outra coisa qualquer. Agora que uma pessoa olha para coisas e diz "se fosse eu, fazia de outra maneira", olhe, por exemplo, nunca tinha deixado as operações ao olhos andarem para não sei para donde, e outras coisas parecidas que não fazem sentido, mas isso comparado com ter saudades… Não tenho saudades, não tenho pena e acho que tive a minha conta de fazer política.
A sua manutenção à frente da Fundação depende de alguma coisa? De resultados?
Não. Quem tem poder para designar um sucessor é o Conselho de Curadores. Eles têm o poder de me substituir. Para mim… o meu nome está entre os do Conselho de Curadores. E está porque quero que as pessoas compreendam que haverá um dia em que vou deixar de ser presidente e vou para o Conselho de Curadores. Porque outros estarão em melhores condições e porque a gente tem uma idade a partir da qual o que deve fazer da vida não é uma coisa executiva extremamente exigente.
O Conselho de Curadores, precisamente: é uma feroz apologista da equidade de género, defendeu as quotas no Parlamento, criticou este Governo por ter só duas ministras - "É uma vergonha", disse -, mas entre os curadores da Fundação só tem, além de si, a Simone Veil... Porquê?
Está a falar de um dos meus pontos fracos... Olhe, porque o esforço que eu tenho feito ainda não resultou. Eu gosto dos corpos onde existem muitas mulheres e gostaria de ter mais. Andei atrás de algumas e não deu. E há mais algumas que eu tenho na cabeça que ainda não deu. Mas tenho pena de não ter um conselho, desse ponto de vista, mais equilibrado. Mas ainda não estão preenchidos os lugares todos.
Inclui personalidades como o ex-presidente do Brasil Fernando António Cardoso e Simone Veil. Eles vão mesmo às reuniões?
Sim, sempre, e com o maior entusiasmo.
Como foi para os convencer a aceitar? A Simone Veil, por exemplo, porque é que a escolheu?
Porque gosto muito dela, é uma mulher fantástica. E por acaso não foi muito difícil convencê-la. Tinha-a encontrado umas vezes, não a conhecia bem. Pedi alguma ajuda para ela ser convencida. Depois aceitou e estivemos juntas muitas vezes, quer no Conselho de Curadores, às vezes visito-a para explicar o que se passa, e para mim é uma satisfação enorme ela estar profundamente empenhada. Ela gosta da Fundação, gosta daquilo que se está a passar, vem, participa nas reuniões.
Voltando à sua abandonada carreira política: ao longo dos últimos anos falou-se muito de si como alguém que teria tido boas condições para ser líder do PSD.
Nunca me ouviram a mim dizer isso. Eu não consigo imaginar que seja uma coisa que pudesse querer muito. Mesmo imaginando que todas as circunstâncias estavam reunidas e que não estava numa situação que é incompatível com isso. Não consigo imaginar que eu quisesse muito.
E é preciso querer muito, não é?
Acho que é preciso querer pelo menos um bom bocado, porque a vida torna-se uma coisa completamente diferente para as pessoas. Os meus filhos nunca acharam graça nenhuma sequer a que eu fosse ministra, quanto mais…
Em 2005 estava convencida de que a sua amiga Manuela Ferreira Leite, que considerava ter as condições para ser líder, não tinha nem muita vontade nem interesse.
Está a falar de quando o Marques Mendes avançou? É sabido que ela na altura nunca avançaria. Acho que ela o disse publicamente. Disse que nunca avançaria contra o Marques Mendes. Só disse isso.
Então essa sua afirmação teria a ver com aquela altura, não com a vontade ou interesse dela. E está contente de a ver à frente do PSD? Gosta da forma como as coisas estão a correr?
Estou contente de a ver à frente do PSD. Percebo muito bem que ela está metida numa situação complicada, mas eu, que agora praticamente nem falo de política nem me manifesto, manifestei-me na altura. Estou convencida de que ela tem uma série de qualidades que são muito importantes. A questão do meu apoio a ela e de me sentir feliz por ela ser líder do PSD estão completamente fora de causa. Não quero entrar em apreciação das circunstâncias concretas do partido, porque naturalmente envolviam muitas outras coisas sobres as quais eu não quero falar e que não têm a ver com a pessoa dela.
O facto de ela ter sido eleita colocou-a a si no Conselho de Estado, onde é a única mulher. Já disse que esperava, ao fim de tantos anos de democracia, que as coisas se tivessem alterado. E que se sente um pouco desalentada…
A gente está sempre a achar que isto é uma questão de tempo. Que há um dia em que as pessoas percebem que isto não pode ser de outra maneira. Depois olho à volta para os outros países e, com quotas ou sem quotas, percebo que a equidade se transformou numa coisa normal. E aquilo que a mim me dói é achar que aqui em Portugal as pessoas em geral, não é só os líderes, não se ralam. As pessoas em geral acham normal que uma mulher esteja em qualquer sítio, ninguém questiona se é ministra das Finanças ou se é líder de um partido. Podem dizer que é a primeira, mas não dizem "não pode ser" só porque é mulher - acho que isso está acabado. Não acham é que tem de haver mais. Na Suécia, se se tentasse formar um governo com muito poucas mulheres, caía o Carmo e a Trindade. As pessoas achariam impensável. Em Portugal o que me irrita mais é a generalidade das pessoas nem repararem. Vejo uma fotografia do Conselho Europeu e a primeira coisa que lá vou ver é quantas mulheres é que estão lá. Olhe para os EUA hoje. Tornou-se uma coisa que não será seguramente estranha que uma mulher venha a ser presidente.
Perdeu-se agora uma oportunidade.
Há uma mulher que não foi escolhida, mas não passa pela cabeça de ninguém dizer que ela não podia ser por ser mulher. Embora não se saiba se as pessoas votaram no outro por causa doutra coisa. Mas parece-me que a história do sexo desapareceu como uma condicionante. E que já avançámos o suficiente para ser um pouco estranho que os portugueses não se ralem com isso.
Como é que compara o poder que tem à frente da Fundação com o poder que tinha ou sentia ter quando era ministra e a forma como as pessoas se relacionam consigo?
Ser ministra, num sítio daqueles e num período político muito agudo, é uma coisa completamente diferente de ser presidente de uma fundação. Ministro é por definição um lugar de oposição a quem está noutro sítio. É um sítio onde se está em permanente competição com quem está noutros sítios. E a competição nem é só com os partidos que estão doutro lado, também é…
Com os que estão supostamente do mesmo lado.
Pois. Para além da enorme satisfação que possa dar ter poder executivo e poder tomar decisões sobre certas coisas e da brutal da exposição em que a gente se coloca… E à família. Ainda por cima há esse lado. Tentei sempre evitar que alguém da família aparecesse onde quer que seja. Não há sossego…
Há a imprensa…
Uma pessoa tem de contar com que a imprensa ande sempre a ver onde é que a gente asneira. Mais depressa isso do que onde é que a gente acerta.
Irritava-se muito com isso?
Depende. Quando às sete da manhã me perguntavam coisas que se tinham passado durante essa noite, não achava a mínima graça. Sobretudo quando se passavam noutros sítios e eu nem fazia a mínima ideia do que é que se tinha passado. Quando alguém se enfiava no patamar onde eu vivo a bater à porta, eu não achava graça nenhuma... Ser ministro é estar num lugar de oposição. De oposição a não sei quantas coisas. Quando é presidente da Fundação não está contra ninguém. Ou pelo menos não a olham assim. A Fundação é vista como sendo de todos e a pessoa é vista como estando a fazer um benefício em nome de todos. Claro que teoricamente também deviam olhar para os ministros assim…
Etimologicamente, ministro é "criado".
É alguém que está a servir. Mas a verdade é que há uma oposição política. Que é saudável, porque é democrática. Ser presidente de uma fundação é estar à frente de uma coisa que tem dinheiro para fazer coisas que podem ser importantes para as pessoas e as pessoas tendem naturalmente a colaborar. Para mim faz uma diferença enorme.
E em termos da reverência com que as pessoas a tratam?
Essa parte da reverência é uma das coisas a que nunca achei muita graça. As pessoas podem ter poder em variadíssimas circunstâncias. Comecei a senti-lo quando fazia exames. Quando era uma miúda e dava aulas e tinha de dar notas e passá-los ou chumbá-los. Não tinha prazer nisso e acho que nunca tive em qualquer outra circunstância. Com toda a honestidade, embora seja um bocado ridículo estar a falar dessas coisas sobre nós próprios, não me dá prazer a reverência. Dá-me prazer o respeito, a lealdade, o podermos trabalhar em conjunto.
Foi uma surpresa para si o convite para dirigir a Fundação?
Completa. Mas eu acho que isto não passa pela cabeça de ninguém. Para já, haver uma pessoa que, em Portugal, deixa dinheiro para uma fundação não tem acontecido muitas vezes. Não fazia a ideia que ele tencionasse fazer isso. Ainda menos que lhe passasse pela cabeça convidar-me.
E porque é que acha que ele a escolheu?
Não sei. Ele sabia de mim o que publicamente se sabe, e eu também sabia dele o que publicamente se sabe. Quer dizer, estive uma vez em casa dele, almocei com as pessoas que na altura estavam em órgãos dirigentes do Banco Totta, eu era dirigente do Conselho Fiscal na altura em que ele o comprou, e depois ele pediu para ficar lá no Conselho Consultivo, enfim, amavelmente, e foi a única vez que o vi. Ele conversou um bocadinho comigo, até me disse porque é que tinha comprado o banco. Foi a única vez que o vi. Aliás, só conheci depois de ele morrer. Depois, por causa dessa coisa do Conselho Fiscal e do Conselho Consultivo, falei duas ou três vezes com ele ao telefone e a última vez foi quatro anos antes de ele morrer, e ele disse-me: "Vou escrever um testamento e vou criar uma fundação que tem a ver com a saúde e queria saber se a senhora aceita ser presidente." É daquelas coisas extraordinárias, não me podia passar pela cabeça coisa nenhuma.
E aceitou logo? Ou pediu para pensar?
Não era possível pedir para pensar.
Não sabe se alguém o aconselhou?
Sei que há uma pessoa que o conhecia muito bem a ele e me conhecia muito bem a mim. O que é que eles os dois conversaram, não sei.
Daniel Proença de Carvalho, que era advogado dele e foi também o seu no processo dos hemofílicos... As áreas de incidência da Fundação, neurociência, visão e oncologia, foram decididas em função de quê?
O fundador não nos deixou grandes pistas. Excepto uma coisa: ele via muitíssimo mal quando morreu e por isso o prémio de visão [entregue a semana passada] tem o nome dele, ao contrário da Fundação, que tem os nomes dos pais. A parte do prémio da visão foi talvez o primeiro projecto que construímos com princípio, meio e fim. Quanto às outras áreas, estudámos isso longamente. Era preciso fazer escolhas. Procurámos perceber, avaliar, o sofrimento ligado a cada grande área da doença. Não apenas a mortalidade, mas hoje o que se chama DALYS, disease adjusted to live years, que tem a ver com o que é que significa na vida de uma pessoa ser portadora de uma determinada doença. Não é apenas se morre mais depressa ou morre menos depressa, mas também o número de anos que a pessoa vive, eventualmente muito incapacitada. Que é como hoje se mede o sofrimento em termos pessoais, sociais e familiares que uma doença pode causar. E resolvemos centrar-nos nas doenças não transmissíveis, porque percebemos que estas doenças vão ter cada vez mais significado em todo o lado, incluído no mundo menos desenvolvido. Por outro lado, cruzámos com esses dados os dados sobre o que é que é investido em investigação. E a área mais descoberta, em termos gerais, é a das doenças neurodegenerativas e psiquiátricas. Portanto, doenças mentais, as Parkinson's, as Alzheimer's, as demências, as esquizofrenias... A que juntámos a área do cancro, a oncologia, porque na Europa há muito pouca investigação na área do cancro. A outra grande questão era saber o que ia ser a actividade fundamental da Fundação. Se íamos fazer ciência nós, numa instituição nossa, ou limitarmo-nos a ser uma entidade financiadora de investigação que outros fazem.
E decidiram-se pelo modelo misto. Por isso se vai construir o edifício em Pedrouços, com centro de investigação e clínica. É para estar, vai estar pronto quando?
5 de Outubro de 2010. Para começar a funcionar a 5 de Outubro de 2010. Não posso dizer que o auditório vai estar pronto. O centro vai ter o programa de neurociências básico, que já está a funcionar no Instituto Gulbenkian de Ciência. Portanto, temos um acordo com eles, eles cederam-nos espaço e portanto os nossos neurocientistas já lá estão instalados a fazer coisas. Mas o nosso objectivo em todas as zonas é conseguir fazer uma aproximação entre aqueles que estudam as ciências básicas e aqueles que tratam doentes. Portanto, entre investigadores e médicos. Um coisa que se ouve falar sistematicamente em todo o lado, mesmo nos sítios cheios de meios, é na enorme dificuldade que têm em que estas pessoas trabalhem em conjunto, em conseguir que aconteça a investigação clínica, aquilo que se chama "investigação de translação". Somos uma instituição de investigação, não nascemos para prestar cuidados clínicos, mas para fazermos investigação clínica em cancro temos de ter uma unidade de prestação de cuidados clínicos. Portanto, na parte do cancro vamos abrir simultaneamente com tudo: com a investigação básica em campo e com uma unidade clínica, numa primeira fase em ambulatório. O grande edifício que vai agora começar a ser construído tem nos dois pisos inferiores uma parte clínica e nos dois pisos superiores laboratórios. E está concebido de maneira a que os que trabalham na parte clínica e os que trabalham no laboratório se cruzem tanto quanto possível.
Portanto vão receber doentes.
Sim, e há coisas que são fundamentais: a pessoa é detectada, o tratamento tem de começar imediatamente. Se é preciso uma operação, essa operação também tem de ser imediata. Queria demonstrar que com uma boa organização a gente consegue fazer isso. Não é impossível. Indo prestar assistência numa área porque precisamos disso para fazer investigação, também a queremos fazer de forma a que o conforto da pessoa seja todo o possível.
Aí é um bocadinho a ex-ministra da Saúde a falar.
Sim, no sentido em que vi muita coisa que não gostei de ver. Vi coisas que eu gostava de demonstrar que podem ser de outra maneira. E portanto percebi que se as pessoas querem, se as pessoas são treinadas, se a cultura é essa, as coisas podem passar-se muito bem, mas depois a instituição que cultiva já é mais complicado. Ás vezes digo que quando saí do Ministério da Saúde, aquilo que tinha na minha cabeça era "agora trato da minha saúde, da minha família, e acabou". Até àquele dia em que recebi um telefonema que me fez mudar de ideias. Mas recusei várias vezes voltar a trabalhar em coisas de saúde porque achava que tinha tido uma dose suficiente.
Porque é que acha que teve aquela oposição tão extraordinária dos médicos? Que ainda há alguns que reviram os olhos quando se fala do nome Leonor Beleza.
Acho que de facto os médicos não são o sector mais difícil disto tudo. O sector mais difícil disto tudo são interesses muito mais poderoso do que quaisquer associações de médicos. Há interesses aqui brutais. Se há sector onde há empresas no mundo que ganham coisas fantásticas é justamente no da saúde. A prestação de cuidados de saúde pode ter uma expressão mais pública, mais privada, mas há sectores que são completamente entregues a empresas poderosíssimas. E acho que essas empresas mexem muito mais do que mexe qualquer associação de profissionais. Os enormes talentos dessas grandes empresas é exactamente associar a si e àquilo que lhes interessa profissionais que evocam outras coisas que apelam muito mais ao nosso coração e às nossas convicções, como o alegado interesse dos doentes.