Chega
Na edição online de ontem do jornal francês Libération, uma das notícias (sobre uma professora judia suspensa numa escola pública) ostentava um aviso: "O Libération decidiu não abrir este artigo a comentários." Uma busca rápida não encontra mais explicações, nem no artigo nem no sítio do jornal, sobre o critério utilizado para abrir ou fechar caixas de comentários. É pena: parece cada vez mais evidente que as regras existentes em cada sítio noticioso para esta matéria deveriam estar claramente afixadas - com as leis aplicáveis a ser lembradas aos comentadores, nomeadamente quanto à responsabilidade criminal e civil.
Em Portugal, os sítios noticiosos regem-se pelas mesmíssimas leis que se aplicam às edições em papel (a Lei de Imprensa e, naturalmente, o códigos Penal e Civil), como vários juristas e colunistas (caso de Pacheco Pereira) têm vindo, nos últimos tempos - sobretudo desde que o comentário "livre", ou seja, sem moderação nem edição, se generalizou - a lembrar. Ninguém, no entanto, o diria: os comentários dos jornais, TV, revistas e rádios são caudais de injúrias, calúnias e ordinarice, sem que os responsáveis dos meios pareçam capazes de - ou interessados em? - reagir. Os motivos desta inércia (e/ou inépcia) são de duas ordens. Comerciais, desde logo: os comentários "abertos" geram mais tráfego, atraindo publicidade, e se os concorrentes "abrem", é preciso acompanhá-los. Mas também ideológicos: se a democracia coloca todos em pé de igualdade, toda a gente deve poder dizer o que lhe aprouver; restringir de algum modo essa expressão é "censura", ou seja, anti-democrático. Pouco importa então que fosse impensável, para qualquer editor, publicar na edição "nobre" a maioria das coisas que "deixa passar" no on line - ninguém quer afrontar "a voz do povo".
Curiosamente, nos EUA, vistos como expoente mundial da liberdade de imprensa e de expressão, a gestão dos comentários e o anonimato da generalidade dos comentadores nos sítios dos jornais têm suscitado um debate amplo assim como processos judiciais e fechos temporários de comentários (sucedeu em 2005 no Washington Post, com a justificação de que a regra eram os ataques pessoais e a obscenidade). O WP e o New York Times - assim como o principal "jornal" da Net, o Huffington Post - anunciaram estar a rever a sua política de comentários, com o WP a pôr a hipótese de dar mais relevo aos comentadores que usam um nome "verdadeiro"; no Reino Unido o Times tem editores para ler, aceitar ou recusar comentários.
A interactividade, consagrada nos blogues, Twitter e Facebook, é decerto um ganho extraordinário. Mas, ao contrário dessas plataformas (onde é possível gerir quem fala e com quem se fala, gravando IP, moderando comentários ou escolhendo, denunciando e bloqueando utilizadores), os jornais, cuja responsabilidade social é infinitamente mais elevada, escolheram não estabelecer qualquer filtro em relação ao que publicam e submeter assim leitores e autores a uma barragem de acusações, insultos, atentados à reserva da vida privada e impropérios. Isso não é só intolerável do ponto de vista dos visados; é uma ofensa à democracia, à liberdade de expressão e à dignidade e missão da comunicação social. Ofende - ou devia ofender - todos. Em coerência com esta visão, solicitei à direcção do DN que encerrasse a caixa de comentários desta coluna na edição online do jornal.